Dilemas do Estado Brasileiro: pobreza e direitos humanos
Jacqueline de Souza Gomes[1] Universidade Federal do Rio de Janeiro
Tradicionalmente, as políticas públicas no Brasil foram desvinculadas da questão social e associadas primordialmente ao desenvolvimento econômico. Porém, a noção atual de desenvolvimento alia-se não apenas ao crescimento econômico, pauta-se também por uma maior complexidade, a agregar o plano econômico, político, social, humano, dentre outros. O desenvolvimento, portanto, vem sendo concebido como um “projeto”, como um fim a ser alcançado a partir do fortalecimento da autonomia dos indivíduos.
No tocante à pobreza, a ineficiência do Estado auxiliou o seu agravamento, mas é este mesmo Estado que segue sendo a melhor alternativa para a solução do problema. Não prepondera mais a idéia de inevitabilidade da pobreza e, conseqüentemente, não há mais motivos para que a toleremos. Um dos impasses por que passam os programas antipobreza apóia-se na oposição entre a autonomia dos cidadãos pobres e o papel normatizador do Estado. De um lado estão políticas de combate à pobreza baseadas na redução das desigualdades e, de outro, políticas voltadas para o fortalecimento da democracia e construção da cidadania. Como conciliar normatização com interesses e necessidades individuais? Como permitir que a pobreza não seja solucionada diante de recursos existentes para tal?
Primamos por uma reforma substancial do conceito de Estado e pela construção de um novo modelo de gestão pública baseado numa abordagem de pobreza como violação de direitos humanos. Trata-se de construir uma abordagem de Estado que sugere a responsabilidade deste no sentido de oferecer aos indivíduos oportunidades para desenvolverem suas capacidades. O reconhecimento da pobreza deve, como nos ensinou o filósofo e economista Amartya K. Sen, ir além da mera recomendação de políticas. Isto significa que o primeiro passo ainda é, ao menos para a democracia brasileira, clarificar a própria atribuição do Estado, os direitos a serem tutelados e, em seguida, formalizar objetivamente os mecanismos para a exigibilidade de tais direitos.
Em linhas gerais, o “nascimento do Estado” enquanto centro político é uma decorrência do “processo de institucionalização da modernidade” (expressão do constitucionalista português J. J. Canotilho). Para tanto, a organização política do Estado se materializa, via de regra, numa “Constituição”. O Estado de Direito se fortaleceu na medida em que os fins estatais deveriam ser exercidos dentro dos limites e formas do direito. Dentro desta perspectiva, a normatização da proteção de certos bens e direitos é resultado da adaptação dos desejos individuais que aponta na direção da justiça, da eqüidade, da segurança, da dignidade e de outros tantos valores.
Partindo-se, portanto, do pressuposto da indispensabilidade do centro político, mesmo considerando fênomenos como os da globalização e da transnacionalização, podemos chegar à idéia de “direitos do homem”, consagrada com o nascimento do Estado e do constitucionalismo.
A própria razão de ser do Estado Constitucional é a proteção de tais direitos. Nos ensinamentos de Canotilho, os direitos do homem forneciam um critério universal para se diferenciar o “Estado Constitucional” do “Estado não Constitucional”.
Particularmente, a Constituição brasileira, editada no final do século XX, é fruto de conturbado processo histórico. À época, o mundo se direcionava para a queda do muro de Berlim, para o fim da guerra fria e apreciava atônito o recente fenômeno da globalização. Como meio de proteção da soberania nacional, nossa Constituição se orientou pela minúcia. Conseqüentemente, hoje, o constitucionalismo brasileiro experimenta, internamente, um enfraquecimento do conceito de “Constituição”. Assuntos mais diversos e até “pouco relevantes” são matéria constitucional, perdendo-se a dimensão efetiva do que deve ser protegido constitucionalmente. Vale, neste momento, indagar, inclusive, se apenas os direitos assegurados constitucionalmente são merecedores de proteção.
Ao reconhecermos que os indivíduos têm direitos morais que não podem ser descartados pelo Estado, ainda que inexista previsão constitucional, quais seriam os limites a tais direitos? Quem decidirá questões conflitantes entre direitos morais não positivados? Tomando-se o dever de obediência à lei como algo relativo, o legislador pode, portanto, produzir normas injustas. Para o filósofo Dworkin, os direitos individuais são mais importantes que os próprios interesses da sociedade e, assim sendo, poderá acontecer situações em que será lícita a violação de uma lei. Mas, quando um indivíduo poderá violar uma lei?
Dentre os direitos morais está o direito à uma vida digna e ao bem-estar. Ainda que uma Constituição não os reconheça ou os reconheça implicitamente, merecem, por óbvio, proteção especial. De tal maneira, será permitido a um indivíduo violar a lei se sua dignidade estiver ameaçada? Em que casos isto efetivamente poderá ser reconhecido com válido? O direito brasileiro reconhece casos em que há conduta criminosa, mas não há sanção posto que a lesão ao bem jurídico protegido não é significativa. É o caso do sujeito que, sem ter o que comer, furta uma maçã de um supermercado. O direito penal, no caso concreto, aplica o princípio da insignificância, excludende de tipicidade, considerando que o dano ao patrimônio do estabelecimento comercial não fora suficientemente relevante para condenar o sujeito.
Ressalte-se que uma característica do direito é a sua fragmentariedade, ou seja, ao ordenamento jurídico é inviável ocupar-se de todos os fatos relevantes a cada indivíduo. Se assim o fosse, inclusive, quedar-se-ia ameaçada a liberdade e a própria dignidade dos indivíduos. O direito não se esgota na lei. Por vezes a lei é meramente o reconhecimento de certos interesses de grupos com poder consolidado e não propriamente a expressão dos valores socialmente reconhecidos. Afinal, que direitos devem ser reconhecidos? Ao magistrado seria permitido ir “além da lei” para a promoção de princípios consagradores de maior justiça no caso concreto?
O momento é de reflexão, de investigação de casos em que a lei pode ser desconsiderada pela preponderância de princípios, especialmente o princípio da dignidade da pessoa humana, sem que haja uma correspondente sanção. Ressalte-se que a inexistência de um mínimo de condições materiais e psíquicas impede que o indivíduo usufrua dos direitos a ele assegurados. A pobreza é, portanto, atentatória ao princípio da dignidade humana e exige o estudo cuidadoso da legitimidade da intervenção estatal (especialmente o poder judiciário) na garantia de direitos morais e legais.
[1] Doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Graduada em Direito e Filosofia. Pesquisadora do Núcleo de Inclusão Social. Bolsista CNPQ.