INCLUSÃO SOCIAL EM MÃO-DUPLA

por Aldo Dinucci* 


Tratava eu em minha sala de aula de filosofia na Universidade Federal de Sergipe há poucos dias sobre a cidade ideal de Platão em sua República fazendo um contra-ponto com o conto “Adrixerlinus” de Ferreira Gullar, do seu livro Cidades Inventadas. Platão, na República, descreve como seria a cidade que seguisse rigorosamente seus princípios filosóficos, sendo, por assim dizer e por esse ponto de vista, um dos pioneiros no projeto de cidades. A partir da argumentação de Platão podemos inferir que a arquitetura das cidades espelha o ideário dos seus habitantes ou de seus líderes, e que a cidade concebida irracionalmente desde seus alicerces morais e políticos não pode ser justa. Pois bem, Gullar, por sua vez, em seu conto, sugere que é possível que justamente nessa pretensão de justiça o projetista de cidades tropece. Pois para construir a cidade justa ou ideal o projetista de cidades deve em primeiro lugar investigar o que é o justo, ou  nada fará senão dar paredes e vulto às suas falsas concepções – e criar uma cidade injusta. E ainda: como homens imperfeitos e, consequentemente, injustos (isto é: todos nós) podem viver numa cidade perfeita e justa?

Daí que o personagem de Gullar que concebe e constrói a cidade perfeita acaba ele mesmo por fugir dela, declarando: “Ao que tudo indica, só homens perfeitos suportam viver na cidade perfeita. E eu não sou um deles”.


É claro que os construtores de condomínios de classe média e alta e de shoppings não são mal-intencionados, porém suas obras estão longe de representar e dar vida a qualquer conceito adequado e humano de bem viver, creio eu. E justamente naquilo em que se destacam “pela perfeição” tornam-se intoleráveis: a assepsia se torna insossa: tais lugares, tão limpos e luzidios, têm também a propriedade de esterilizar a criatividade humana: como observa o historiador Russel Jacoby em seu livro Os Últimos Intelectuais, tais projetos são os responsáveis pelo desaparecimento dos intelectuais nos Estados Unidos por diversos motivos. Além disso, o que deveras me aflige quanto a tais espaços é sua pobreza estética e ética:
são uniformes e monótonos, impessoais e desumanos. É fundamente indiferente visitar um shopping ou um condomínio de luxo em Nova Deli ou em Salvador: quando você conhece um deles, conhece todos – é sempre a mesma  perspectiva consumista e internacional que impera, afogando e eliminando isso que faz que um lugar seja ele e não outro, apagando todos os traços de humanismo e organicidade que a civilização humana costuma exibir em seus melhores momentos, tudo o que uma cultura tem de criativo e original é ali dissipado. O objetivo é criar um ambiente moralmente, religiosamente, culturalmente neutro: e isso se consegue, obtendo-se uma atmosfera paupérrima em termos humanos. 

Um aluno meu me disse que, estando em Salvador para um curso de treinamento, só se sentia propriamente na cidade quando estava vendo pela televisão a série global “Ó Pai Ó”: os ambientes nos quais transitava durante o dia (o apart-hotel, o shopping onde fazia as refeições, o local de treinamento) eram “internacionais” e não faziam lembrar nem emotamente a cidade sui generis na qual ele se encontrava.  Na mesma aula um aluno me perguntou por qual razão no Rio de Janeiro turistas iam visitar as favelas, e lhe respondi que provavelmente a razão é que ali eles podem conhecer a cidade tal como ela realmente é, seu povo, seu linguajar, sua cultura enfim, ao contrário dos ambientes estéreis das classes média e alta.

Quanto a isso, lembro-me, só para exemplificar, que o escritor e chef Antony Bourdain, quando veio ao Brasil, foi visitar lugares populares e provar suas comidas, evidentemente porque ali ele pode encontrar o que há de peculiar e autêntico no Brasil. De fato, onde podemos encontrar o que há de mais autêntico no Brasil? No morro da Mangueira ou no shopping carioca Rio-Sul? Na cidade de Olinda ou no shopping Rio-Mar de Aracaju? Assim, creio que a inclusão social tem de ser feita em mão dupla: se por um lado é preciso suprir as comunidades carentes dos morros cariocas com as condições mínimas de infra-estrutura (saneamento, segurança, educação, esporte, lazer), por outro, há de se cuidar cada vez mais para que o que há de autêntico e orgânico aí não somente se conserve, mas consiga de algum modo vivificar os estéreis ambientes onde vivem as classes médias e altas da atualidade. As pretensões titânicas de se criar “cidades perfeitas” acabam sempre sendo experiências culturalmente repressivas e pobres. Os governos devem não pretender criar tais coisas, mas apoiar a cidade que cresce organicamente, e que, por assim crescer, atende às diversas necessidades existenciais dos homens que nela habitam.

*Aldo Dinucci é professor adjunto da Universidade federal de Sergipe e doutor em
filosofia pela PUC-RJ.