A cada dia a vida vale menos

Biazita Gomes publicou no twitter no começo da semana breve reflexão que merece ser transcrita: “A consequência mais terrível da eleição de Bolsonaro é constatar que o vizinho simpático, o colega de trabalho divertido, não existem. São máscaras de monstros que vivem na sociedade com a gente mas não compartilham dos ideais civilizatórios. Nos matariam sorrindo”.

Tinha acabado de ler quando vi o vídeo do governador do Rio de Janeiro num abraço emocionado e efusivo com o chefe de operação de resgate dos reféns sequestrados no ônibus na ponte Rio-Niterói, na manhã da terça-feira. Uma alegria transbordante, um orgulho cívico de parte a parte, polícia e governo, como eu nunca havia visto. O robocop carioca tinha encerrado o episódio segundo a determinação do chefe expressa no início do mandato: um tiro “na cabecinha”.

Foi-se na poeira da memória o tempo em que policiais pautavam sua ação na neutralização do transgressor sem tirar-lhe a vida: o novo paradigma é eliminar, acabar com a raça. Nada de prisão, perguntas, inquérito, processo, condenação, todo o protocolo seguido nas nações civilizadas. Justiça sumária, execução extrajudicial pura e simples. Não importa o que levou o homem ao sequestro, sua motivação; não interessa que a arma era falsa. O sujeito está morto. O governador vibrou, a população aplaudiu, a imprensa ecoou – é pra isso que serve a mídia há muito tempo.

O presidente da república, sempre pronto a disparar a arminha, comemorou com mais ou menos essas palavras: “Hoje família de inocente não chora”. Que profundidade! Quanto sentimento! Não faz muito, ao comentar o padecimento da avó da esposa no hospital público em Ceilândia, cometeu o comentário: “Parente bom é parente longe”. Lembrei de “Bandido bom é bandido morto”. Palavras, apenas palavras, mas ferem ouvidos sensíveis, enquanto muitas pessoas concordam felizes. Zero empatia, zero solidariedade, zero amor ao próximo.

Será a temida barbárie? Penso que é a construção do novo tempo, do Antropoceno em que o homem submete a natureza aos seus caprichos e ambições, em que os recursos naturais são privados, o direito à existência é para um grupo restrito. Destruição da Amazônia, aquecimento global, poluição ambiental, catástrofes anunciadas, tudo faz parte do enredo macabro no qual a vida tem valor relativo, mata-se como nunca porque considera-se dispensável grande parte da população mundial. Nas favelas cariocas, no país inteiro, na Síria, nos Estados Unidos, na África, na Europa e na Ásia, por toda parte há gente sobrando, pessoas sem chances de inclusão econômica e social. Entramos na era da inteligência artificial, robótica, automação. Pessoas não importam.

Uma fábrica de automóveis não emprega mais milhares de trabalhadores, quase tudo é feito por robôs operados por meia dúzia de funcionários. Serviços telefônicos são processados por vozes metálicas que simulam pessoas com ruído de tecla de computador ao fundo. Siri e Alexa interagem com usuários com razoável desenvoltura. Já se fabricam veículos que dispensam condutores, e na China pelo menos um telejornal tem uma apresentadora robô “de carne e osso”. Neste cenário, bonecas infláveis são coisa de museu, nosso presidente é um Fred Flintstone e o Brasil um imenso pasto onde não se mata boi sem propósito, mas pessoas…

Este ambiente sombrio sugere mais atenção às palavras de Biazita Gomes no twitter de segunda-feira passada: “A consequência mais terrível da eleição de Bolsonaro é constatar que o vizinho simpático, o colega de trabalho divertido, não existem. São máscaras de monstros que vivem na sociedade com a gente mas não compartilham dos ideais civilizatórios. Nos matariam sorrindo”.