Repolho com bacon

Pintura antiga retrata o trabalho escravo no Brasil. Créditos- Reprodução

Vamos divagar, amigo leitor e gentil leitora, só pra variar um pouco, fugir do clima sufocante da política cotidiana e dos fuzis e metralhadoras do governador do estado. Tratemos de temas amenos – culinária por exemplo. Algum de vocês já comeu repolho com bacon? Na cozinha do sul dos Estados Unidos é um prato servido como tira-gosto e, junto com o jazz e as bandas de Nova Orleans, tem origem negra como a nossa feijoada. De preparo simplíssimo: fatia-se o bacon em tiras finas e põe-se a fritar em fogo baixo regado com um fio de óleo vegetal, virando de vez em quando com o garfo. Não se esqueça de esquentar a panela antes, não se deve preparar nada com ela fria.

Enquanto isso, corte o repolho como preferir, uma porção generosa porque ele diminui bastante no processo e quando o bacon estiver no ponto misture com a colher, acrescente um pouco de sal (sem esquecer que o bacon já é um pouco salgado), pimenta do reino a gosto, derrame uma xícara pequena de água e abafe a panela. A receita americana diz para deixar por meia hora no fogo brando, mas como gosto do repolho menos cozido, preparo em quinze ou vinte minutos. É importante não acrescentar água demais para não virar ensopado. Depois é só servir para acompanhar cerveja, caipirinha, uma simples limonada, ou então pôr à mesa junto aos pratos do almoço. Pessoalmente, prefiro comer ao ar livre, onde os efeitos digestivos da mistura se dissipam rapidamente.

Você que se interessou pelo assunto até aqui já percebeu que é receita caseira barata e simples de preparar, bem de acordo com os tempos bicudos onde estamos metidos até o pescoço sem esperança de melhora à vista. Em novembro do ano passado, quando a reforma trabalhista completou um ano, o desemprego alcançava 12,5 milhões de trabalhadores, a informalidade ocupava 600 mil pessoas a mais e os que trabalhavam por conta própria haviam crescido mais de 580 mil. Nesta categoria que o governo rotula de “empreendedores” estão incluídos os motoristas de Uber, gente que trabalha para outros aplicativos, prestadores de serviços domésticos e outros – todos sem qualquer vínculo empregatício, direitos, garantias, férias, 13º salário.

Para ilustrar a gravidade deste cenário, lembro uma história acontecida em São Paulo e contada no Facebook: um jovem entregador da ifood, rappi, Ubereats, não importa, pilotando a bicicleta de aluguel, ia entregar o almoço do cliente quando foi atropelado. Nesta situação, quem se responsabiliza pelo “empreendedor”? O aplicativo? A empresa da bicicleta? O restaurante? O freguês com fome? Pois é: ninguém. Telefonaram para o aplicativo e a voz do outro lado só queria saber se o pedido estava intacto, ou se tinha sido atropelado também.

Ocorrências semelhantes se dão diariamente. Lá em São Paulo mesmo, mas no interior, um homem de 27 anos apagou a caminho da entrega, foi socorrido por transeuntes e chegou morto ao pronto socorro. Sua esposa contou que ele trabalhava até 18 horas por dia e vinha se sentindo estranho ultimamente. Dormia no máximo quatro horas e se alimentava mal. Ganhava o suficiente para o sustento da mulher e da filha pequena, mas nunca tinha folga. Esta é a realidade do neoliberalismo criminoso ao redor do planeta, não importa se redondo como Yuri Gagarin o viu, ou chato como os imbecis do governo acreditam.

Nos países em conflito, Sudão, Somália, Filipinas e Brasil, por exemplo, o capitalismo exclui cada dia mais pessoas e as elimina com políticas de defesa nacional, antiterrorismo, segurança pública, ou extermínio puro e simples. Acontece nas favelas brasileiras há muito mais tempo do que nos lembramos, antes de uma forma moderada, seletiva, mas de uns tempos para cá como política de estado, com características de genocídio. O governo detesta a gente, o próprio presidente disse que “quem gosta de pobre é o PT”. A galera achou bonito e aplaudiu.

Perdão, atencioso leitor e prezada leitora, se desviei do rumo que me propus no início, é que me sinto meio Drummond, com duas mãos e o sentimento do mundo. A vida se impõe às intenções e o que começou como receita culinária vai terminando como crônica política. É difícil evitar a vala comum do cotidiano em que cada vez mais gente reclama nas redes sociais da inação, da apatia, da indiferença das pessoas e instituições na defesa do estado de direito e da democracia.

No entanto, para isto caminhamos até hoje, na desigualdade, desrespeito ao próximo, intolerância, violência. É bom ter em mente que pelo menos um terço da população auscultada em diversas enquetes de institutos de pesquisa aprova as execuções extrajudiciais, os assassinatos cometidos pela polícia, forças armadas, milícias. E a receita para sairmos desse poço passa pela educação e a cultura civis, sem o militarismo que está na moda.