Em 2019, Antônio Carlos Santos Freitas (56 anos), o Carlinhos Brown, completa 40 anos de carreira e, para celebrar, realizou um show beneficente, em parceria com o Jornal impresso Correio, em prol do Instituto dos Cegos da Bahia (ICB), do qual é embaixador desde 2017, com toda renda revertida para instituição.
O multiartista, que no início da sua trajetória musical – quando deslanchava como percussionista – chegou a declarar que não pensava em cantar, subiu ao palco ao som da música “Vilarejo”, de Marisa Monte, de mãos dadas com a deficiente visual Manu Dourado, 11 anos, e pediu ao público para fechar os olhos e apenas sentir a música, demonstrando, assim, sua tamanha sensibilidade: “o homem é conduzido pela ânima.
Se você souber olhar para dentro, vai achar tanta riqueza que você nem vai imaginar”. Confira:
AVF – São 40 anos de uma história linda e, ao longo desses anos, você sempre buscou estar conectado com suas raízes?
CB – Eu sou a continuidade dos meus ancestrais. Foi nesse passado que eu me inspirei e me inspiro para ser o que sou. Quem quiser se conhecer vai no “Quê” (termo usado pelas religiões de raízes africanas para designar o sagrado que existe em cada ser humano).
Eu nasci em 62, numa ditadura forte. Era duro porque tínhamos que cortar o cabelo pimpão (raspadinho atrás e na parte lateral) e usar roupa azul de casimira (tecido social). Se tivesse com fome, tínhamos que calar sozinho, ou ir para o mato catar mangas, jacas e sapoti. Não podíamos pedir nada para o vizinho, não.
Hoje é diferente, temos liberdade, civilidade e temos caminhos: o futebol e a música têm ensinado isso, mas, sobretudo, o aproveitamento que podemos dar às comunidades, por meio das lideranças comunitárias, que se auto ajudam. Todo bairro popular tem um curso de corte costura, percussão, música… sempre tem alguém ensinando alguma coisa e nós precisamos nos interessar e despertar esse interesse no próximo. É aí que começa a mudança: na educação. Precisamos aprender. É isso que faz a diferença, está provado.
Nossa cultura, sobretudo, está dentro da força e da verdade, da resiliência. Acho que uma das vitórias sociais é buscar esse caminho de inteligência até para consertar algumas coisas que nossos antepassados não souberam, mesmo porque não tiveram escola, como eu não tive. Eu nasci analfabeto e o máximo que eu tive foram três meses de estudo. Depois fiz mais quatro anos; peguei o curso do MOBRAL e me alfabetizei. O resto foi aprendendo a ler um pouquinho de “caco de jornal”, ouvindo os mais velhos, juntando… Todo homem nasceu para crescer.
Nós precisamos encontrar o nosso tempo para nos autocompreendermos. A revolução rítmica aconteceu a partir do século passado, onde se destacou Neguinho do Samba, na criação do samba reggae, a serviço do Oludum, e eu, na criação da Timbalada. Não é no passo do rap americano que está nossa transformação; a rítmica mais poderosa do mundo, hoje, está no pagode baiano e no funk carioca.
AVF – Você é inspiração para muitos jovens de comunidades que têm em você exemplo e esperança.
CB – Quando uma criança me vê, eu sei que ela pode estar se inspirando. Tenho que ser o cara que ensina. Mas, mais do que eu como inspiração, é a cultura que eu carrego. Se olharem para essa cultura, se inspirarem nela e estudarem, buscarem conhecimento, podem ser muito maior do que sou.
AVF – Na sua comunidade, o Candeal, você oportuniza isso aos jovens por meio dos projetos sociais idealizados por você, entre eles, o Pracatum?
criado em 1994, a Pracatum Ação Social, é uma organização sem fins lucrativos que realiza programas educacionais, de cultura e de desenvolvimento comunitário no bairro. A instituição, que vai além da escola de música e inclui ações de infraestrutura, nasceu da necessidade da comunidade de se profissionalizar e buscar alternativas para melhorar a qualidade de vida.
CB – Não basta conseguir, sem conquistar. A gente acabou com o analfabetismo no Candeal, fora tantos outros projetos que nós temos. Nós somos detentores da sofisticação e precisamos lançar mão disso porque é com a educação que podemos mudar o mundo e acabar com a violência.
AVF – Além de tudo que você já faz, ainda arranja tempo para pintar. É um hobby?
CB – Arte não é hobby e também não artesanato. É arte. Arte não se leiloa, não se vende espalhafatosamente. Eu já tenho quase mil quadros pintados e sabe quantas exposições eu já fiz? Duas, porque essa é a forma de acertar a conta com os patrões do meu pai. Se você pedir: faça aí um “ó com um copo”, eu não sei fazer, mas eu deixo que a alma me tome. O homem é conduzido pela ânima.
Se olhar para dentro, vai achar tanta riqueza dentro de você, que nem vai imaginar. Não seja apenas olheiro do que vê, olhe para dentro de si. Isso não significa só olhar para você e ser egoísta. Olhe, absorva e descubra o potencial de amor que tem para oferecer ao outro, ao universo, eu tenho isso a oferecer. Ofereça mais do que queira receber sempre.
AVF- Qual o recado que você deixa para o jovem de comunidade?
CB – Seja a comunidade, a vizinha que dá um conselho, o amigo que divide o feijão e a bebida com o outro, seja a pessoa que aparta uma confusão. Não desrespeite ninguém e nenhum seguimento, porque Deus está em todo lugar. Deus não pertence a ninguém individualmente. Estamos nos machucando em nome de uma fé e glória falsas porque quem conhece o amor, discorda da dor.
AVF – Nove em cada dez pesquisas feitas ao seu nome na internet, mostram a palavra inquieto. Em 40 anos, você parece ter feito de tudo. Falta alguma coisa?
CB – Por incrível que pareça, muita gente nem percebe, mas ao longo desses 40 anos eu nunca gravei um CD de axé music. Agora, 40 anos depois, estou começando a produzir meu primeiro CD de axé: “meu primeiro Axé”.
Entrevista publicada no jornal A Voz da Favela edição de setembro 2019