Felizmente, apesar do cenário caótico em que o País se encontra atualmente, graças às lutas dos movimentos sociais e ao crescimento da democratização da informação, podemos perceber um avanço no debate de pautas das chamadas “minorias invisíveis”. Elas são as minorias dentro de minorias como, por exemplo, o conjunto de identidades sobre as quais vamos falar aqui: as pessoas não-binárias.
Pessoas trans são aquelas que foram marcadas pelas normas sociais de “homem” ou “mulher” ao seu nascimento, mas que não se identificam com essa imposição. Sendo assim, existem os homens trans, as mulheres trans e as travestis. Para além dessas formas de identificação, existem as outras muitas identidades que estão fora da imposição da sociedade, que diz que você tem que ser ou homem ou mulher. Dentro desse guarda-chuva podemos encontrar as pessoas agêneras (que não têm gênero), andróginas (um meio termo entre homem e mulher), os espectros da transmasculinidade e da transfemininlidade, que são as pessoas que, em algum grau, se identificam com o gênero feminino e masculino, mas não completamente. Por exemplo, uma pessoa pode ter sido designada como homem ao nascimento e se encontrar dentro do campo da transfeminilidade, mas não ser uma mulher binária, ou vice e versa, entre outras.
Existem pessoas não-binárias nas favelas e periferias, mas muitas vezes elas precisam fingir que não são, precisam viver “no armário” ou apenas não têm oportunidade de falar sobre e são hostilizadas quando tentam. O preconceito, o estereótipo de que se reivindicar como tal não é algo para a pessoa favelada e viver em uma sociedade que separa tudo – até nossa língua entre apenas feminino e masculino – joga essas pessoas ao esquecimento, à margem da sociedade, ao invisível. Lembremos que pessoas trans são, em sua maioria, pobres, de favela, desempregadas ou trabalhadoras do sexo, pessoas marginalizadas.
Muitas vezes vemos, em debates acerca da não-binaridade, pessoas queixando-se de ser algo complicado demais, de ser só um movimento de internet ou “uma fase”, coisa de jovem. Nesse momento temos que nos politizar, descobrir o porquê de essa realidade nos parecer tão distante. Você conhece uma pessoa não-binária ou de outra identidade trans? Não é uma questão complicada. Ninguém precisa ler livros e livros de debates sobre gênero para entender as pessoas trans. É só conhecer, conviver com elas. Ou será que o seu preconceito não te deixa entrar no mundo do outro?
Conversamos com algumas pessoas não-binárias periféricas de diferentes lugares no Brasil para que elas compartilhem conosco suas vivências transgredindo as normas de gênero.
“Meu nome é Caleb Ewé (e é tão bom reafirmar meu nome assim). Meus pronomes são masculinos. Pronomes neutros não me incomodam, mas o que me faz sentir contemplado e vestido na minha própria pele são os masculinos.” Um dos seus maiores sonhos é ser ator, criar personagens e dar vida a outras existências através deles.
Caleb começa nos contando que viveu a maior parte da sua vida no bairro Sta. Cecília, em Viamão, uma cidade na Região Metropolitana de Porto Alegre, que é apelidada de “quase interior”, e que também viveu alguns anos no Porto Seco, Zona Norte de Porto Alegre. Ele conta que já foi expulso da casa em que vivia com seus parentes e atualmente vive com uma pessoa com quem se relaciona.
Ele é assumido desde 2016 tanto para a família quanto para os amigos, porém sempre foi difícil assumir sua identidade não-binária.
“Em quase todo lugar que já vivi minha relação com minha identidade sempre foi muito minha, algo que eu não expressava pros outros com muita frequência porque ou não tinha ninguém pra compartilhar, ou ninguém entendia. Eu tenho parentes que me aceitam e me amam incluindo minha identidade, mas a maior parte deles acha que eu sou um homem trans porque quase não existe informação sobre não binariedade e isso torna difícil pra compreensão deles. Com exceção das pessoas mais próximas, todo mundo que me vê pessoalmente acha que eu sou mulher cis ou homem trans e eu meio que já me acostumei com isso.”
Sobre sua vivência quanto a violências sofridas, ele nos conta que em Porto Seco, mesmo antes de assumido, teve experiências horríveis com racismo e LGBT+fobia. Depois de se assumir foi pior.
“Quase todas as minhas experiências com violência física foram lá, assim como as experiências como violência verbal mais humilhantes foram nesse lugar. A única pessoa trans q eu conhecia lá era um guri, preto como eu, que morreu uns dois anos depois que eu fui embora da Zona Norte, enterrado com nome de batismo.”
Já em Viamão, Caleb passava bastante tempo sozinho, típica experiência de gente trans que vive em cidade não tão grande.
“Quando criança não era tanto assim, eu sofria zombaria por não parecer com as outras meninas, mas ainda tinha contato com o mundo, depois que cresci e me descobri não binário eu meio que passei a viver num universo alternativo ao dos outros, pelo que parece. As mesmas pessoas que brincavam comigo na rua anos atrás passaram a me ver enquanto um corpo estranho e às vezes riam quando eu passava. A parte boa é que por conta da internet eu tive a oportunidade de fazer amizade com outras pessoas trans binárias e não binárias de cidades vizinhas à minha. Desde que me assumi, pessoas trans da internet tem sido minha companhia. A única parte ruim disso era que eu vivia longe de tudo. Se era difícil até chegar num mercado naquele lugar, imagina como não era pra se encontrar com amigos.”
Ele finaliza nos contando o que o inquieta em relação à invisibilidade não-binária, como é invisível ser não-binário e, ao mesmo tempo de outras minorias, também é periférico.
“A pior de todas as ideias envolvendo não binariedade é essa história de que não tem não binário gordo, pobre, preto ou morador vila/favela/interior, e ponto. Gente binarista falando que “esse papo não chega na favela” pra justificar o próprio preconceito, enquanto eu e a maioria de mis amigues, às vezes, não temos nem o que comer. E além de temer violência LGBTfóbica também temos q temer a polícia. Se fosse só falta de informação eu compreenderia, o mundo faz de tudo pra que a gente não tenha noção de diversidade, mas todo mundo que eu vejo falando esse tipo de coisa é pessoal com acesso (muitas vezes branco) que usa preto e favelado de como desculpa esfarrapada pra enterrar nossa existência o mais fundo possível. Inclusive esse tipo de coisa alimenta vivências violentas como a minha. Subjugar pessoas pobres e negras como se elas não fossem capazes de compreender diversidade tira delas a oportunidade de aprender a acolher gente como eu, e a consequência são as experiências que eu já citei.”
Nlaisa nasceu e vive até hoje na Vila do Pinheiro, no complexo da Maré, no Rio de Janeiro, e também é uma pessoa não-binária e faz drag.
“Pra mim a arte drag não tem definição, mas quando estou em drag essa arte me define. É transgressor esse movimento de me tornar drag, performar e depois me desmontar. Drag funciona pra mim, pois amplio minha criatividade e potencializo cada fragmento que faz parte de mim.” Ela também participa de projetos sociais: “Eu coordeno um pré vestibular aqui na Maré (o primeiro e mais antigo) no Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré – CEASM. Faço parte da equipe do Museu da Maré também. Pra mim é sempre uma vitória saber que dou aula pra mais de 180 pessoas (entre adolescentes, jovens, adultos) e que eles aprendem mais do que o conteúdo da aula, aprendem sobre o “desconhecido” e passam a respeitar, se interessar em saber mais e até mesmo rompem com alguns preconceitos sobre pessoas Queers e LGBTs+.”
Nlaisa nos contou sobre como é ser uma pessoa não-binária e favelada.
“Ser uma pessoa não binária na favela não é tão fácil, pois toda vez que saio pra rua, saio com a certeza que pessoas vão me olhar de uma forma diferente. Pra mim é um exercício interno saber disso, de certa forma me protejo pra não absorver energias que possam me desanimar. Falar de favela é também falar sobre pertencimento e territoriedade, quero dizer, no meu território as pessoas já aprenderam a pessoa que eu sou. Mesmo tentando me decodificar, a minha estética já se destacou a um ponto que as pessoas da minha área já não ‘estranham’ mais esse corpo.”
Ela também falou sobre violências que enfrenta enquanto pessoa não-binária.
“A mais recorrente violência que eu sofro é a insistência de pessoas que sabem que eu não gosto do meu nome morto. Que eu dou a opção até de me chamarem pelo apelido “Jef”, mas algumas pessoas insistem em não me chamar de Nlaisa ou Jef. De qualquer forma, não me importo tanto com a pertinência da nomeação, pois assim como minha vivência, não me fixo a um chamado, a uma única forma de viver e me expressar. As pessoas da minha favela respeitam mais minha identidade do que alguns ‘intelectuais arrogantes da graduação’ que acham que sabem sobre tudo porque leram em algum lugar sobre. A favela convive comigo. Por isso me respeita, me compreende, aprende e troca conhecimentos. Na faculdade as pessoas estão preocupadas em se mostrar mais inteligentes, mais militante e esquecem que pessoas trans não precisam ser validadas nem respaldadas por pessoas cis.”
Bento foi criado em uma cidade do interior e já morou em diferentes lugares, mas admite que não sabe viver em lugares diferentes da sua realidade. Ele nos diz que nunca sofreu preconceito onde viveu, pelo contrário, só em bairros burgueses. ”O difícil é essas pessoas [de cidades pequenas] entender sexualidade e olhe lá. Mas, o que me conforta é que eles “não tão nem ai” pro que você é. É só falar na língua deles, ser menos didáticos e mais vivências.”
Essa foi uma matéria com algumas vivências de pessoas não-binárias, para conhecer mais da comunidade e suas lutas e pautas, acompanhe canais como Bryanna Nasck e RExistência Não Binária.