Por Isabel Mansur
“(…) Cá para baixo, na Cidade Maravilhosa, a do samba e do carnaval, a situação não está melhor. A idéia, agora, é rodear as favelas com um muro de cimento armado de três metros de altura. Tivemos o muro de Berlim, temos os muros da Palestina, agora os do Rio. Entretanto, o crime organizado campeia por toda a parte, as cumplicidades verticais e horizontais penetram nos aparelhos de Estado e na sociedade em geral (…)” (José Saramago)
Há quase duas décadas a política de segurança do Rio de Janeiro vem se aprofundando em repetidas fórmulas de combate sob a égide de uma guerra urbana contra a pobreza. No cenário, tragédias diárias, que envolvem famílias estraçalhadas pela perda de jovens executados, têm funcionado, com o encarceramento em massa [1], como o principal instrumento de controle social da pobreza. A missão não se oculta: manter a ordem neoliberal da exclusão estrutural. É evidente que, em um cenário conjuntural de crise, uma das tendências mais concretas que viveremos é a da agudização dos instrumentos de repressão e de controle das “classes perigosas” [2]. Seja o controle através dos dispositivos decriminalização, seja o controle permanente e unicamente repressivo, que conduz à “vida sob cerco” [3] – no caso do Rio de Janeiro, “vida entre muros”.
O projeto dos muros altos cercando favelas só pode ser entendido como expressão cabal da mesma ordem de apartheid social que se reflete nos muros distantes dos presídios, que os afastam dos olhos daqueles que comodamente preferem defender o seu patrimônio acima da vida da maioria. Mas não são só esses os exemplos de expressão dessa lógica de controle e de morte social. O secretário estadual de Segurança Pública, Mariano Beltrame, em recentes declarações dadas sobre três experiências – Santa Marta, Cidade de Deus e Batan –afirma que reorienta sua política de segurança sob a lógica da “política de proximidade”. Ao mesmo tempo, recentes acontecimentos mostram como as forças repressivas continuam atuando: a morte de mais um jovem na Maré e na Providência; dois mortos e três feridos no Morro da Mineira; uma criança baleada na Chatuba de Mesquita, na Baixada Fluminense; um homem executado na Coroa; a ocupação do BOPE em Macaé.
De que se trataria esse modelo de proximidade então? Dos modelos de ocupação permanente como política de varejo que não se encontra desconectada do atacado do extermínio, do cerco representado pelos muros e, obviamente, das expectativas de um governo do estado (eleito com bases populares) em um ano já pré-eleitoral. O modelo de proximidade já foi debatido em inúmeros países, como a França, Japão e Canadá. Ainda quando chamado de “policiamento comunitário”, vários outros países poderiam ser também listados. No entanto, por trás desse belo nome, na cidade maravilhosa, tem tido primazia a prática de cem por cento de controle social,desconectada de políticas de longo prazo do Estado e com controle diário e permanente da vida dos moradores pela força de segurança. Toques de recolher, manutenção de um diálogo repressivo, abusos, entrada indiscriminada nas casas, criminalização das pessoas e da cultura popular têm sido parte do dia-a-dia desses moradores.
Esse verniz "democrático" de segurança pública legitimado pela era Pronasci e Consege aplicado com recursos do PAC, trata-se, nada mais, nada menos, de um laboratório carioca do modelo visitado por Sérgio Cabral no início do seu governo, o modelo “tipo Colômbia”, onde a população mais pobre vive sob constante vigilância: o verdadeiro veneno aplicado como antídoto. Ou, num caso mais extremo, equivale-se às “forças de paz” – não coincidentemente, brasileiras – que estão construindo o permanente controle social com a “paz armada” no Haiti.
Será possível existir nenhum modelo paliativo sem uma reorientação da política desegurança e sem um processo profundo de reforma das instituições de segurança? Como se restabelecer uma sociabilidade e condições de diálogo com uma população de maneira permanentemente vigiada pelo Estado de repressão, por policiais treinados para suspeitar e “protegê-los deles mesmos”? Que tipo de proximidade pode ser aventada a partir da construção de muros de 11 quilômetros e três metros de altura e um sistema de monitoramento com câmeras nas comunidades? É a proximidade garantida pela distância? É preciso se entender, então, por que esse modelo "de proximidade carioca" não é contraditório com a idéia de confronto. Ou não será a lógica de confronto que vem construindo o cenário ideal para esse “segundo passo” da criminalização permanente, permitindo que a idéia de ocupação se legitime e que, portanto, seja legalizada a cidadania vigiada?
As repetidas fórmulas que buscam levar um rótulo “democrático” não passam, simplesmente, de renovadas formas de aprofundar a sociedade cercada e baseada na criminalização e controle da pobreza. Uma opção que legaliza o apartheid, guetifica, segrega e mantém sobre controle repressivo a maior parte da população. Mais uma jogada suja de um governo que não vai ser esquecido como “o governo que mais matou nos últimos tempos” – algo que não pode ser ocultado, mesmo com o processo de militarização do ISP e ocultação de dados que deveriam ser de domínio público. Triste é ver que essas atrocidades atingem várias vezes o coração das mesmas pessoas. Seja a mãe da Providência que perdeu dois filhos em operações do Estado em menos de dois anos, seja para todos aqueles que, cercados ou vigiados, permanecem considerados como "os ninguéns" – que, como diria Galeano, “valem menos que a bala que os mata”. [1] O número de presos no país, por exemplo, passou de 90 mil, em 1990, para 443 mil, em 2007 – um aumento de 468%.[2]
A idéia defendida por Alberto Passos Guimarães de que a elite forçou “aqueles que penetraram no inferno do pauperismo e se transformaram de reservas do mundo dotrabalho em reservas do mundo do crime, em suma, a passarem de classes laboriosas para classes perigosas”, continua sendo uma importante e atual referência para o debate sobre o processo de criminalização da pobreza em curso.[3] O livro “Vida sob Cerco” é um importante trabalho organizado por Luiz Antonio Machado da Silva, e recém-lançado, que reúne artigos de antigos e jovens estudiosos sobre o tema, publicação indispensável às inquietações atuais.
Publicado no Boletim do Mandato Marcelo Freixo em 07/05/2009
*Isabel Mansur é cientista social e assessora de Direitos Humanos do Mandato doDeputado Estadual Marcelo Freixo