* Ana Rita Martins

 

Fizemos do mundo um produto. Tudo nele é vendido ou comprado, implícita ou explicitamente. Compramos nossas ações de status com cada roupa que usamos ou lugar que frequentamos. Temos acesso a determinadas amizades muitas vezes por sermos produto de um meio, habitués de um determinado espaço social. É só pensar: se hoje você despisse seus pés, rasgasse suas roupas e perambulasse assim para o resto dos dias, as mesmas pessoas de sempre lhe receberiam em suas casas? É tudo invólucro, imagem, simulacro. E muito tempo gasto em planos que nem sempre são essencialmente seus, mas do que esperam que você seja. Do que esperam que você compre.

A notícia também é produto, tanto as boas quanto as ruins. São consumidas vorazmente, mas com pouca reflexão porque, afinal, tem que se passar à próxima para não ficar desatualizado. Nós consumimos cada vez mais roupas, carros, posições, sem percebermos que nossos sonhos também são consumidos na poeira do vento. Quantos dizem “quando eu tiver o emprego x, eu serei feliz”, “quando eu comprar a minha casa, eu serei feliz”? Não é o trabalho e a casa em si que as pessoas procuram, mas a simbologia que há por trás: a segurança, o controle. E aí eu pergunto: existe realmente segurança e controle num mundo onde a lógica predominante é a do consumo?

Há um tempo, estava parada na rua, esperando um sinal abrir, no Rio de Janeiro, quando meus olhos se voltaram para um homem que estava ao lado de uma lixeira. Lembrei do poema de Manuel Bandeira: “Vi ontem um bicho. Na imundície do pátio. Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, não examinava nem cheirava. Engolia com voracidade. O bicho não era um cão. Não era um gato. Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem”. Pois ele era um homem. E enquanto meus olhos vagavam pelo indizível do nível a que chegamos, aproximou-se um pastor me entregando um jornal de uma das maiores igrejas do país. “Você precisa de Jesus. E eu posso te ajudar. Por que você não vem ao culto essa noite?” “E por que você não chama ele? Não vê que ele precisa mais do que eu?”. Eu me calei, o pastor se calou. Atravessei o sinal com a alma em angústia. É claro que o mendigo não iria ao culto naquela noite. Ele não estava suficientemente trajado e nem vergava o passaporte do dinheiro.

Enquanto isso, mais pessoas pobres e miseráveis se acumulam em valas, em ruas, favelas e guetos. E como disse Hélio Luz, no documentário Notícias de uma Guerra Particular, “e fica quieto, e cala a boca”. Contidos por simbologias de muros, por estereótipos ultrapassados, por políticas cosméticas, gerações e gerações se desintegram numa labuta diária por um naco de dignidade (que deveria ser um direito e não um sacrifício inalcançável por séculos e séculos). Acho que tenho saudade de um mundo onde não vivi. Será que existiu uma época em que o tempo, da natureza, de si, do outro, era mais respeitado? Existiu uma época em que se buscava dar mais as mãos em vez de se abrir carteiras? Existiu o tempo em que as pessoas não estupravam ideais, bom senso, a humanidade que deveria nos diferenciar?

Aos 26 anos é muito difícil abortar a ideia de mudar o mundo. O universo é mais podre do que bom já que valores básicos viraram praticamente estratégias de marketing. E apesar de tanto lucro e abundância na Terra, ainda existe fome, injustiça, miséria, ganância, difamação e sofrimento. Se as pessoas não se importam com a causa de suas próprias tristezas, ao engolirem quilos anuais de rivotril e lexotan para disfarçá-las, por que importariam as causas das tristezas alheias? A única saída que enxergo é tentar usar todo esse maquinário cultural, social e econômico insano – construído para nos tornarmos seres pétreos e insensíveis – contra si mesmo. Ao menos para tentar mudar um milímetro da realidade. Eu ainda não desisti. Não enquanto existirem homens que se confundam com bichos. Ou bichos que se confundam com homens.

 

*Jornalista