A Medida Provisória com a qual Bolsonaro atinge os jornalistas remete ao cenário anterior a outubro de 1969, quando o general Médici baixou o decreto 972 instituindo a obrigatoriedade de diploma para o exercício da profissão. Ao mesmo tempo, reforça os caminhos para engajar mais gente ao mundo da informação e levar mais longe e mais alto a voz das favelas.
Quarenta anos depois do decreto, em 2009, o Supremo julgou inconstitucional a exigência de diploma por 8 a 1. O relator Gilmar Mendes lembrou que o decreto-lei 972/69, que regulamenta a profissão, foi instituído no regime militar e tinha clara finalidade de afastar do jornalismo intelectuais contrários ao regime.
A argumentação mais simbólica do ministro se deu ao comparar formações profissionais: “A formação em jornalismo é importante para o preparo técnico dos profissionais e deve continuar nos moldes de cursos como o de culinária, moda ou costura, nos quais o diploma não é requisito básico para o exercício da profissão.”
Na Medida Provisória de Bolsonaro, além dos jornalistas estão liberados de registro profissional arquivistas, artistas, atuários, sociólogos, técnicos em segurança do trabalho, técnicos em secretariado, publicitários, radialistas, químicos e guardadores e lavadores de veículos, entre outros.
É, na realidade, a maneira que o governo encontrou para precarizar atividades profissionais já enfraquecidas com a reforma trabalhista que lhes reduziu a força da representação sindical. Além disso, significa um passo adiante ao cerceamento da ditadura, uma espécie de atualização, um aperfeiçoamento adequado aos novos tempos.
Na ditadura, no ano seguinte à regulamentação da profissão de jornalista, em janeiro de 1970, veio a censura prévia à imprensa, controle exercido dentro das redações do conteúdo a ser veiculado. Censura similar atingiu as artes, em especial teatro, cinema e música, cujos textos e letras tinham de ser aprovados, nos moldes que o governo agora usa através dos “filtros” como o da Ancine.
No caso específico do jornalismo, a forma encontrada para defender a liberdade de imprensa foi a criação dos jornais alternativos abrindo espaço na marra para contrapor-se ao discurso oficial dos jornalões. Apesar desse esforço, o jornalismo foi mortalmente ferido, e as consequências a gente vê ainda hoje.
De fato, o trabalho diário do jornalista depois de quatro décadas de formação universitária deixou de ser a transcrição dos fatos, a apuração criteriosa, a busca da realidade por trás das aparências. Somos, quase sempre, porta-vozes do oficialismo, receptadores de denúncias e dossiês que interessam a grupos e sempre defendemos o status quo, sem desafiá-lo.
Com a medida provisória de agora, a intenção do governo não é criar problemas para os patrões; muito ao contrário: é facilitar-lhes a vida como subproduto ou consequência da investida sobre os profissionais. Contra os patrões, ele corta verbas publicitárias, assinaturas oficiais que são muitas e pesam na circulação dos jornais e pressionam empresas privadas a não anunciar. Luciano Hang suspendeu a publicidade da Havan nos veículos ligados à Globo e conclama seus amigos a seguir o mesmo caminho.
A intenção é escancarar a guerra contra arquivistas, sociólogos, fiscais do trabalho, artistas, comunicadores e outros cuja rotina desagrada o discurso mentiroso do governo das fake news, porque põem o dedo na ferida e expõem a fraude nas estatísticas oficiais.
Mais do que a oposição, o que ofende o governo é a inteligência, o saber, a verdade. As queimadas aumentam? Demite-se o presidente do INPE. Os agrotóxicos avançam? Afasta-se o responsável pela Embrapa. Este é o governo de Deus acima de todos.
No momento em que você lê estas linhas, pastores evangélicos da direita radical dos Estados Unidos estão em Brasília dando cursos para parlamentares com o auxílio de pastores brasileiros representantes do conservadorismo mais ignorante que se pode imaginar.
No caso da mídia, a medida provisória representa movimento contrário ao que Lula deveria ter feito mas não fez, que era regulamentar os meios de comunicação. Embora o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, avise que muita coisa não será aprovada na medida, sobretudo a questão dos jornalistas, prevê-se embate duro entre parlamentares, mostrando mais uma vez a divisão da sociedade brasileira no parlamento.
Nem quando se veem perseguidos por uma medida do governo, os jornalistas percebem o seu alcance. O que se vê nas mídias sociais são reclamações sobre perda de direitos trabalhistas, cinco horas de jornada, prorrogáveis por mais duas e fim da exigência de diploma. Entretanto, os donos da mídia sempre contrataram quem quiseram, sem problemas, nunca fizeram cumprir jornadas e se alguém é contra demitem e chamam substituto na fila de desempregados.
Este é o momento de novos horizontes, de trazer de volta o que o jornalismo tem de mais autêntico e legítimo, que é a denúncia, a exposição da realidade, ser porta-voz dos oprimidos. Abre-se a porta para os perseguidos falarem por si. Já que a grande mídia está do lado dos neofascistas, dos generais reacionários e do pastores de falsos deuses, vamos à luta com os instrumentos de que dispomos.
É aqui que a Agência de Notícias das Favelas se enquadra como tribuna dos mais prejudicados pelo modelo excludente, racista, homofóbico e tudo de ruim que nossa sociedade espelha e cultiva. É no cenário atual que o Prêmio ANF de Reportagem entregue na quarta-feira 13 ganha relevância especialíssima.
Pela primeira vez no país, moradores dos morros e das baixadas têm visibilidade para mostrar seu mundo em contraste com a glamurização televisiva das novelas e com a cidade gentrificada dos bairros nobres e dos centros de consumo em que eles não são bem vindos e sofrem humilhações e agressões diárias.
Este é um chamamento a todos os negros, às mães da favela, aos adolescentes e aos jovens caçados pela política de segurança pública genocida para que abracem este canal aberto às suas vozes, aos seus reclamos, às suas realizações e conquistas. Mais do que nova imprensa alternativa, somos a voz da gente brasileira chegando ao mundo graças à internet.