Em dezembro, quando a faculdade inteira já estava de férias e aguardávamos ansiosamente pela nota semestral, eu resolvi vasculhar algumas das prateleiras da Biblioteca Florestan Fernandes, e ver se achava ali algum livro para ler durante uma semana. Busquei anteriormente por livros que me interessavam e fui pegá-los em cada prateleira, mas acabei puxando um banquinho de apoio e me sentei ali para ler rapidamente alguns e folhear outros que estivessem mais velhos e não pudessem ser emprestados.
Encontrei na última estante do segundo andar, um livro de título esquisito, mas que parecia bem sugestivo. Sorvete e outras histórias é um livro do itabirano mais conhecido do Brasil, Carlos Drummond de Andrade. O livreto de pouco mais de dez histórias me acompanhou durante duas semanas, e entre o vai e vem do dia-a-dia, eu sempre o levava na mochila e degustava aos poucos o prazer de cada história. Questionado no prefácio acerca de sua obra ter se tornado matéria de vestibular, o escritor responde: “É, mas o vestibular me prejudica, em vez de me ajudar. Costumam fazer perguntas de múltipla escolha tão desnorteantes que o jovem, na impossibilidade de uma resposta segura, acaba com raiva do autor, esquecendo que este não tem culpa de ser usado na circunstância. E eu próprio não saberia responder a umas tantas questões em quadrinhos sobre o que escrevi…” (SIC).
Aquela resposta me encheu de esperança, pois eu soube naquele momento que minha dificuldade com Machado de Assis era passageira. Continuei lendo, e me deparei com um conto de título A doida, história que se inicia página de número 24; narrando a vida de uma mulher, de idade avançada que vive sozinha e sofre com as violências de seus vizinhos.
“A doida habitava um chalé no centro do jardim maltratado. E a rua descia para o córrego, onde os meninos costumavam banhar-se. Era só aquele chalezinho, à esquerda, entre barranco e um chão abandonado; à direita, o muro de um grande quintal. E na rua, tornada maior pelo silêncio, o burro pastava. Rua cheia de capim, pedras soltas, num declive áspero.” (ANDRADE, p.24)
“Os cabelos brancos e desgrenhados. E a boca inflamada, soltando xingamentos, pragas, numa voz rouca. Eram palavras da Bíblia misturadas a termos populares, dos quais alguns pareciam escabrosos, e todos fortíssimos na sua cólera.” (Aparência da mulher, p.24)
A doida é uma personagem que não parece ter tanto valor enquanto pessoa humana, mas a imagem de quem ela foi ou é hoje, está inicialmente presente, na manifestação física de sua casa, que da mesma forma que a dona, se mantém velha, na mesma rua e é sempre atormentada por forças externas, ou seja, seus vizinhos e qualquer pessoa que se sinta no direito de atirar uma pedra contra a morada da senhora. Presa à sua inação, a força da velha parece residir também, em maior parte e visualmente, à casa; sua aparência, história e maldade (contada pelas pessoas) está presente nela de forma imagética, ambas são uma.
“O garoto empurrou o portão: abriu-se. Então, não vivia trancado?…E ninguém ainda fizera a experiência. Era o primeiro a penetrar no jardim, e pisava firme, posto que cauteloso. Os amigos chamavam-no, impacientes. Mas entrar em terreno proibido é tão excitante que o apelo perdia toda a significação. Pisar num chão pela primeira vez; e chão inimigo.” (ANDRADE, p.27)
A mulher parece conseguir ter voz na trama justamente quando o espaço da casa (objeto animado-inanimado) é transposto, e finalmente alguém tem coragem, audácia e vontade de saber o que há além da casa, ou seja, o sujeito de quem se tanto fala e que todos tratam como inumano ou de menor valor. Adentrando o misterioso universo da história, o garoto consegue se dar conta de que a pessoa em que se fala não está presa somente na casa, mas também em muitas e muitas histórias, que engrandecem e aumentam o que ela teria sido um dia, transformando-a em algo que está além do humano, e repleto de fantasias, maldades e mentiras que a tornam em um ser estranho. O proibido ganha cor, voz e corpo, e finalmente a doida é revelada.
“Não adiantava o menino querer fugir ou esconder-se. E ele estava determinado a conhecer tudo naquela casa. De resto, a doida não deu nenhum sinal de guerra. Apenas levantou as mãos à altura dos olhos, como para protegê-los de uma pedrada.
Ele encara-a, com interesse. Era simplesmente uma velha, jogada num catre preto de solteiro, atrás de uma barrica de móveis. E que pequenininha! o corpo sob a coberta formava uma elevação minúscula. Miúda, escura, desse sujo que o tempo deposita na pele, manchando-a. E parecia ter medo.” (ANDRADE, p.28)
No encontro entre ambos, nada mais, nada menos, que uma reação de animal e caçador (humano-inumano). O medo do menino parece ser menor que a vontade de conhecer o íntimo da casa, e a reação da idosa é mais uma vez de proteção, não só à sua casa, mas a seu corpo, seus olhos, pois finalmente é encontrada como um sujeito também humano. Portanto, a mulher é dignificada e ganha vida nas ações do garoto. Parece haver não mais uma relação de um ser superior a outro, mas de curiosidade mútua, respeito e empatia. A sabedoria manifesta pelo jovem parece, de alguma forma, detalhar que àqueles que tem a curiosidade de ir além (buscar, procurar, investigar) podem conseguir mais conhecimento e mais sensibilidade acerca de um objeto. Por fim, destaco a sensibilidade com que é narrada a morte da mulher, agora mais humana que nunca, e finalmente acompanhada de alguém, que não só não a abandonaria no momento da morte, como também seria a testemunha ocular de sua futura história e da humanização que se faz dela.
“Foi tropeçando nos móveis, arrastou com esforço o pesado armário da janela, desembaraçou a cortina, e a luz invadiu o depósito onde a mulher morria. Com o ar fino veio uma decisão. Não deixaria a mulher para chamar ninguém. Sabia que não poderia fazer nada para ajuda-lá, a não ser sentar-se à beira da cama, pegar-lhe nas mãos e esperar o que ia acontecer.” (ANDRADE, p.30)
Referências Bibliográficas
ANDRADE, Carlos Drummond de. A doida. In: Sorvete e Outras Histórias. São Paulo: Editora Record, 1993.