Volto ao Rio nesta segunda-feira, depois de quase um mês em Brasília e nada me fez lembrar a capital da esperança, da universidade de Darcy Ribeiro, dos debates parlamentares elevados, manifestações, posicionamentos políticos e discussões acaloradas nos bares da vida.
Quatro anos atrás, a cidade era sede de um governo acuado, sem jogo de cintura, arrogante, mas democrático. Hoje é sede do governo militarizado, autoritário, muito mais arrogante e pouco democrático. E mais grave: composto por gente sem qualificação, obtusa até a medula e sem pejo de apresentar-se racista, homofóbica, misógina e mais predicados condenáveis.
Nos 21 anos de ditadura tivemos muito mais militares do que atualmente nos altos postos do governo, vários boçais, mas um bocado de outros com traquejo para a política e o trato da coisa pública. Houve até cultos, inteligentes, bem falantes. Hoje, infelizmente, não.
E pior: os civis que ocupam altos cargos nos escalões mais elevados do governo são antas batizadas, quando abrem a boca despejam “um montão de amontoado de muita coisa” que agride o vernáculo, o bom senso e a inteligência nacional.
Nota-se sem maior esforço de observação que imitam o chefe, como no caso do Roberto Alvim com a armadilha em que caiu por ignorância e depois acusou “ação satânica” para derrubá-lo. Ou no comportamento de Regina Duarte com o painel falso de apoio de artistas no Instagram e sua espantosa preguiça mental sobre santos católicos e o hasteamento da bandeira na capital.
Ou ainda na própria presidência da república ao divulgar a lista de cantores sertanejos num encontro com Bolsonaro, logo desmentida por alguns que sequer estavam no país naquela data. Estamos sob um governo de falsidades diárias.
O deputado Eduardo Bolsonaro escreveu que o último Enem foi sucesso absoluto, quando o Brasil inteiro sabe que foi uma lambança inédita que custará a cabeça do ministro da educação nos próximos capítulos da novela.
Em Brasília vive a mais alta renda per capita brasileira, 2,6 vezes o índice nacional, graças basicamente aos salários nos poderes da república, sobretudo no legislativo e no judiciário. Não por acaso já foi conhecida, nas décadas de 1980/90, por “Ilha da Fantasia”, uma alusão ao seriado de sucesso na televisão.
Esta bolha de prosperidade e privilégios tem por vizinha, além das cidades satélites, a comunidade Sol Nascente/Pôr do Sol, em Ceilândia, apontada a maior favela do país, com cerca de 80 mil pessoas, segundo estatísticas oficiais, ou 120 mil, como estimam os moradores.
Este entorno pobre e remediado é o celeiro de mão de obra para as funções subalternas no Plano Piloto, Lagos Sul e Norte e condomínios de classes média e alta. São pessoas que trabalham na construção civil da cidade que se estende a Águas Claras e aos setores Sudoeste e Noroeste. Os desafortunados e deserdados são vistos pelo Plano esmolando nos sinais, nas portas de restaurantes, em toda parte.
A expressão máxima deste contingente populacional é a primeira dama Michele de Paula Firmo Reinaldo, nascida e criada em Ceilândia, a 30 quilômetros do Plano. Sua família tem uma história difícil, a avó foi presa por vender crack e o tio por integrar uma milícia. Não destoa no ambiente onde cresceu e o envolvimento com Fabrício Queiroz e as rachadinhas não devem surpreender o distinto público.
Bonita e articulada, Michele trabalhou em gabinetes parlamentares, onde conheceu o marido, como ela oriundo de família sem recursos do interior paulista e também como ela alpinista na sociedade desigual e cruel. Primeiro no exército e mais tarde na política.
Pois bem, Brasília que há sete anos fervilhava nas “jornadas de junho” e há apenas quatro ocupava o noticiário com vaias a políticos no aeroporto, manifestações pró-impeachment e o grito contra a corrupção, está morta e insepulta a céu aberto para o país inteiro ver.
Dizem que lá fora políticos, acadêmicos, intelectuais e jornalistas não conseguem entender como o país decaiu tanto em tempo recorde, ao ponto de entregar o patrimônio de seu povo ao mercado neoliberal, de aumentar deliberadamente a desigualdade social, de orgulhar-se da polícia mais violenta do mundo, de vangloriar-se de taxas obscenas de mortes e de ser campeão em assassinatos de mulheres e gays.
Um turista que chegasse hoje à capital escreveria no seu caderninho: “Brasília é uma cidade-fantasma que no entanto respira silêncio profundo”. Roubo a imagem de Nelson Rodrigues porque é a que mais se molda ao cenário do qual estou prestes a decolar, na semana inaugural deste fevereiro.
O Distrito Federal, “quadradinho” no mapa goiano onde JK inventou de plantar a nova capital do país, foi a quinta unidade da federação a eleger Bolsonaro no segundo turno de 2018: dois em cada três eleitores votaram nele.
Não quer dizer que Brasília estava com Bolsonaro, nem pelo fim da corrupção, mas sim que não suportava mais conviver com a soberba e a jactância do modelo petista, seu comportamento no poder, sua certeza inabalável de contar com o apoio do povo comprovado em quatro eleições seguidas, a partir de 2002.
Recentemente divulgou-se pesquisa sobre a aprovação do governo nos estados e o Distrito Federal registrou pouco mais de 30%. Entre outras coisas, este dado revela mais do que o desgaste de Bolsonaro: mostra o tamanho do eleitorado que o suporta, apesar das mancadas e mentiras diárias.
Como em qualquer sede do poder ao longo da história, em Brasília sempre se ouviram casos acontecidos nos gabinetes e corredores que jamais chegaram ao conhecimento da opinião pública. Rusgas, disputas internas, traições, conspirações, todo tipo de história faziam a diversão das conversas engraçadinhas ou escabrosas em torno do poder.
Já não ouço mais conversas assim nas rodas dos botecos e nem mesmo nos churrascos de fim de semana. Parece que as pessoas estão cabreiras, há uma desconfiança no ar, voltou-se ao tempo da ditadura, já não há segurança nem para servidores públicos concursados, o governo ameaça demitir quem não andar na linha.
O silêncio ensurdecedor tem por aliado também o maravilhoso mundo da tecnologia onde tudo é filmado, gravado, editado, transcrito e serve para investigações e punições. Nem dentro do seu carro o cidadão está fora do alcance do Grande Irmão. O presidente da república dorme com a arma ao alcance da mão, convencido de que querem eliminá-lo.
Por outro lado, uma juventude emergente em Brasília se vira da melhor maneira que encontra, apesar das armadilhas do modelo de sociedade que lhe impõem os poderosos. Tal e qual no tempo da censura e da repressão, da Legião Urbana, da Plebe Rude e da antiga Capital Inicial, a frente de resistência cultural se ergue e se fortalece.
Por isto o turista acidental do grande dramaturgo registraria no seu caderninho: “Esta é uma cidade-fantasma que no entanto respira silêncio profundo.” E como aconteceu lá atrás, sairá da catalepsia aparente mais viva, vibrante e culta do que nunca, porque a saída do atraso é pela cultura Quem viver verá!