Charge de Carlzen. Imagem: Reprodução Internet.
Charge de Carlzen. Imagem: Reprodução Internet.

Leio em algum lugar na hileia amazônica da internet que o pretenso candidato democrata à presidência dos Estados Unidos, Joe Biden, vice de Barack Obama, repete nesta pré-campanha os mesmos erros das duas anteriores. Há quatro anos, Obama o convenceu a ceder a vez a Hillary Clinton, mas agora Biden acha que não tem pra ninguém: é o único capaz de impedir a reeleição de Donald Trump.

Onde nós entramos nisso? O que nos interessa? Bem, entramos neste buraco em que estamos escondidos, e nos importa na medida em que os canalhas de cima mandam nos de baixo e assim vamos vivendo a vida. Lembra quando Obama apontou o dedo para Lula disse “Esse é o cara!”? Ele quis só marcar a bola da vez do capitalismo mundial, o mal a ser cortado pela raiz.

Agora acusam Joe Biden de se repetir e não convencer ninguém. Pouco importa, na real, porque o único democrata capaz de promover mudanças é o senador Bernie Sanders, 77 anos,  soi disant socialista. Mas nos Estados Unidos, socialista é qualquer um que defenda diarista ou jardineiro, e socialismo é palavrão pior que comunismo. Cá pra nós, não será esse senador ancião quem mudará o rumo da economia americana. O establishment e o povo não querem mudança.

Quando qualifico Sanders de velho não tenho a intenção de desmerecê-lo nem diminui-lo, seu competidores também são idosos, alguns beirando os 80, um ou outro com problemas de saúde de causar inveja a Jair Bolsonaro, que frequenta hospitais com tal assiduidade que conhece os aparelhos da unidade de terapia intensiva pelo apelido.  Conhece de verdade, não como o Queiroz, que passou uns dias no Albert Einstein, hospital seis estrelas de São Paulo.

Quando Paulo Guedes reclamou que empregada doméstica estava viajando para Disney, verbalizou apenas a queixa generalizada da nossa classe média inconformada com a divisão do “seu espaço” com as classes C e D durante os governos petistas. Ele disse o seguinte:

“Não tem negócio de câmbio a R$ 1,80. Vou exportar menos, substituição de importações, turismo, todo mundo indo para a Disneylândia. Empregada doméstica indo pra Disneylândia, uma festa danada! Mas peraí! Peraí! Vai passear ali em Foz do Iguaçu, vai ali passear nas praias do Nordeste, está cheio de praia bonita. Vai para Cachoeiro do Itapemirim, vai conhecer onde o Roberto Carlos nasceu. Vai passear no Brasil, vai conhecer o Brasil, que está cheio de coisa bonita para ver”. 

Paulo Guedes desconhece que tarifas aéreas para Miami ainda são mais baratas do que para muitos destinos nacionais e ainda hoje são comuns comentários depreciativos sobre passageiros de sandália de dedo e bermuda nos aeroportos. “Isso aqui virou rodoviária!”, indignam-se aqueles que não andam de ônibus nem para ir ao centro da cidade.

O preconceito ganhou visibilidade plena em todas as suas expressões, mas o “preconceito racial” saiu definitivamente do armário e desnudou para nós mesmos a verdade racista do país. Bolsonaro já disse que a cavalaria americana fez o trabalho certo ao dizimar os indígenas e livrar o país dos problemas que nós temos. Sem nenhum pudor, o presidente lastima que o exército brasileiro não tenha eliminado os povos originários. Já lamentou também que as forças armadas não mataram todos os esquerdistas durante a ditadura.

Seria capaz de dizer o mesmo em relação à população negra? Claro, mas não o faz porque o trabalho sujo é feito à luz do dia. É sempre conveniente lembrar que os negros somam um quarto da população total dos Estados Unidos, enquanto no Brasil são mais da metade dos mais de 200 milhões. E que lá o racismo já dividiu o país ao meio numa guerra pelo fim da escravidão em nome do desenvolvimento econômico. Lá, a maior democracia do mundo, os negros só conseguiram o direito ao voto e a se eleger em 1965.

Aqui no quintal a história é mais confusa, com muita discussão, negro sempre foi considerado inferior, como índio, mulher e criança. É difícil até abordar esta questão, contestada pelo sistema racista, misógino, pedófilo e machista, mas basta ver quantos doutores, generais, cientistas e magistrados negros tivemos para ter uma ideia do quadro geral. Ou olhar para o sistema prisional, outro excelente indicador. Nossa história ensina que o Brasil foi construído sobre o tripé constituído por patrimonialismo, racismo e desigualdade.

Copiamos o modelo norte-americano porque é o que mais se assemelha ao nosso, o que desejaríamos ser, mesmo num futuro incerto e duvidoso como o que se desenha nos planos do capitalismo internacional onde os Estados Unidos ainda se destacam. Lá a população carcerária é majoritariamente negra e latina, chega a mais de dois milhões de pessoas e seu acesso à justiça é bem parecido ao brasileiro, ou seja, limitado e fraco.

Não são obra do acaso as referências de Bolsonaro à cavalaria que eliminou os índios e de Guedes a empregadas domésticas em férias na Disney. Apenas refletem a imagem que ambos procuram reproduzir entre nós. Aqui a polícia mata negros como lá, só que em quantidades maiores e abertamente; dificultamos o acesso à educação e à vida pública também como nos Estados Unidos, inclusive através de eleições “livres e democráticas”.

Aqui, como lá, o filtro político é ideológico. Por exemplo, elegemos negros para o legislativo desde que conservadores e de preferência religiosos. Lá o voto não é obrigatório e para votar o cidadão tem de se inscrever com antecedência. O dia da eleição não é domingo nem feriado e o eleitor precisa pedir ao chefe para deixar o trabalho e ir à seção eleitoral.

Nas áreas de população negra, latina e pobre a quantidade de seções de votação é mínima e na eleição de Trump muitas foram transferidas para locais distantes, ou simplesmente suprimidas sob a alegação de poucos eleitores. Como se vê, são diferenças grandes em relação ao nosso sistema, mas por aqui também são tomadas providências restritivas à participação de pobres e demais opositores.

Doações individuais a candidatos e partidos de esquerda são conferidas e checadas e muitas vezes denunciadas pelo Ministério Público Eleitoral como ilegais. Exemplo: advogado atuou de graça (contribuição) na campanha de tal partido. O MPE quer a última declaração de renda para checar se a contribuição, transformada em hipotética remuneração, está nos limites que a lei estabelece. Com candidatos da direita raramente acontece, salvo por motivos políticos. Foi o que ocorreu com Michel Temer ao ser condenado por doação ilegal a uma campanha eleitoral.

Por todas as semelhanças, e também pelas dessemelhanças, enxergamos com outro olhar as coincidências dos modelos de governo brasileiro e norte-americano e entendemos com maior clareza a submissão histórica ao “grande irmão do norte”. Juraci Magalhães declarou em 1965, quando era embaixador em Washington, “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Frase de fazer corar frade de pedra, como se dizia, que o levou sucessivamente ao ministério da Justiça e ao Itamaraty no mesmo período Castelo Branco.

Francamente, há alguma distância entre Juraci Magalhães ou Sérgio Moro e Ernesto Araújo? Entre 1965 e 2020? O general de ontem e o capitão de agora? Cartas para a redação.