A solidão das mulheres no universo das cadeias

Imagem: Arquivo/Agência Brasil.

Domingo, 1 de março de 2020, início do mês dedicado às mulheres e à luta diária delas por igualdade. E nesse primeiro dia do mês, a revista eletrônica da Rede Globo, o Fantástico, apresentou uma reportagem especial que tratava da vida das mulheres trans nas cadeias. E a matéria foi conduzida brilhantemente pelo Doutor Drauzio Varella, que trata o tema desde o ano de 1989, quando começou a trabalhar como médico voluntário no presídio de Carandiru, no estado de São Paulo.

Como março é o mês dedicado às mulheres, e pegando o gancho da reportagem, pensei em falar um pouco sobre a solidão de todas as mulheres nesse universo das cadeias. Pensei em abrir um pouco mais o tema, porque dentro deste universo sombrio, que fica escondido por trás de muros altíssimos, envoltos por cercas elétricas, portões de chapa aço e grades, para que sociedade não veja, não enxergue aquele território excluído, estão muitas delas, abandonadas, sozinhas e totalmente solitárias. E elas estão na solidão não só pelo lado dentro, aguardando uma visita, que talvez nunca chegue, mas, também pelo lado de fora, nas filas das visitas, que, talvez, também não aconteça.

O Brasil tem a 3ª maior população carcerária do mundo, perdendo apenas para Rússia e Estados Unidos. O ano de 2019 o país atingiu a triste marca de 812.564 de pessoas presas, e destas 5,8% são de mulheres, o que totaliza 42 mil detentas em todo território nacional. E a maioria delas é detida por tráfico de drogas, que quando não foi praticado para ajudar seus companheiros, foi para sustentar seus filhos, já que a grande maioria é de pobre a paupérrimo, estando muito abaixo da linha da pobreza.

Mulheres estão em menor quantidade no sistema carcerário, mas quando se trata de abandono dentro das cadeias, elas superam e ficam muito à frente dos homens. Entram na cadeia sozinhas, enfrentam o período do encarceramento sozinhas e saem da cadeia sozinhas, sem apoio e amparo de ninguém, nem mesmo muitas das vezes de um familiar próximo, como mãe ou pai. E se entram grávidas, têm seus filhos sozinhas, sem o direito até mesmo de receber visitas na maternidade, em um momento tão especial e único em suas vidas. Suas acompanhantes sempre são as carreiras, que estão ali ao lado delas, mais para impedir uma possível tentativa de fuga, do que ajudá-las é apoiá-las. Ou seja, de outras mulheres também solitárias, estão ali ao lado das detentas para vigia-las 24 horas, ininterruptamente.

Após o parto, ficam com seus bebês durante o período de no máximo 6 meses, para depois, os entregarem para familiares cuidarem ou para adoção, perdendo totalmente o contato com as crianças, e retornando novamente à solidão, pois sua única companhia, que amenizava um pouco a dor e frieza da cela, nasceu livre atrás das grades, sendo assim, deve ganhar a liberdade muito antes da mãe.

Certa vez, uma ex-presidiária me relatou que ficou presa durante quase 5 anos, e nesse período recebeu visita nos dois primeiros meses de prisão de uma amiga, mas depois ela não pode mais ir, então, ela teve que “bancar a cadeia”. Sua mãe não tinha condições de ir visitá-la, dois de seus filhos eram menores de idade, e ao maior, segundo ela, ela não deixou fazer a carteirinha para entrar prisão. Não quis que o filho a visse naquele lugar. Às vezes, se comunicava com seus parentes através de cartas que enviava por algum conhecido quando ia para visita. E, de vez em quando, surgia uma oportunidade de falar com eles por telefone e ouvir suas vozes por alguns poucos minutos. Quando a perguntei como fez para se manter dentro da cadeia, ela ficou em silêncio por alguns segundos, e respondeu: “dava meu jeito, tive que aprender, mas no início, passei muita fome dentro da cadeia, dormi durante muito tempo no chão duro e frio. Frio, não, gelado! Até eu saber como era o esquema lá dentro, passei foi perrengue, e muito perrengue, mesmo”. Fiquei ali, ouvindo um pouco do desabafo daquela mulher, que eu, praticamente, acabava de conhecer, mas, antes daquele momento, ela já havia passado por mim diversas vezes e nós nunca sequer nos cumprimentamos.

Não resisti em fazer-lhe mais perguntas, fiquei tão curiosa com a história de vida dela que, mesmo sendo um simples bate-papo, quis saber mais um pouco. Então, fiz mais uma pergunta, acho até que a mais crucial. Eu a perguntei pelo seu companheiro, já que havia me dito que tinha um namorado na época. Foi o único momento que a vi sorrir, e dar uma gargalhada logo em seguida, e sem meias palavras dizer: “se ele aparecesse lá, ia ficar preso também! E mesmo que não fosse por isso (risco de ser preso), homem não vai à cadeia visitar mulher, são poucos os que aparecem lá e a maioria é pai ou algum irmão, mas também é difícil eles aparecerem”. E o motivo da prisão dela? O mais comum deles, o que leva todos os dias dezenas de mulheres para dentro do cárcere.

Era uma conversa informal, dessas que surgem do nada e não sabemos como e nem porquê, mas ficam gravadas na nossa mente, e sempre que assistimos matérias como a do Dr. Drauzio Varella, elas vêm a nossas lembranças, nos fazendo refletir sobre diversas coisas. Lembranças que nos fazem refletir principalmente sobre o machismo, que é uma prisão enfrentada pelas mulheres desde o nascimento.

E nesses momentos de reflexão, também incluo aquelas mulheres que não estão atrás das grades, mas nas filas para visitar aqueles que lá estão. E elas também estão e são solitárias. Cuidam de tudo, desde a sua própria vida, a vida do preso lá dentro e cá fora, e cuida dos filhos, netos, etc. E na maioria das vezes sem apoio de ninguém, contando apenas com sua força, coragem e disposição para “encarar e enfrentar” a cadeia. Como elas mesmas costumam dizer, são presas também, principalmente em dias de visita.

Enquanto em relação aos homens as mulheres são minoria nas penitências, nas filas de visitantes elas estão em maior número que eles. E não é só o machismo que os afasta das filas de visitantes de cadeias, a limitação na quantidade de homens que podem entrar também é um fator que contribui para isso. Desta forma, mulheres estão sempre sozinhas em maior quantidade na fila das pessoas indesejáveis. São elas mães, em sua maioria, avós, esposas, namoradas, companheiras, irmãs, primas e amigas, todas mulheres que sozinhas, acrescentam a rotina das cadeias às suas, acumulando mais uma função, ou melhor, digamos assim, mais um afazer doméstico aos seus já existentes.

E as filas das solitárias não se restringem somente aos presídios. Naquelas formadas nos portões dos centros socioseducativos elas estão lá, cumprindo seu “dever e obrigação”, no seu papel social único e exclusivo de mulher. E as mães são a grande maioria nas visitas aos menores apreendidos, pois, muitas são mães solos, criam seus filhos sem a presença paterna por diversos motivos. Os principais são morte por execução ou em confronto com a polícia, prisão do pai e ou “sumiço”, este é o mais comum entre eles, o que acaba, devido às circunstâncias forçadas, tornando as mulheres as únicas responsáveis pela família.

E as mães, sem apoio nenhum, criam os filhos que estão cá fora, enquanto o estado cria à sua maneira e da forma mais cruel o filho que está lá dentro daquilo que eles chamam de Centro Socioeducativo, aos cuidados de agentes e algumas poucas assistentes sociais e psicólogas. É mais uma preocupação para aquelas que são chamadas pela sociedade de guerreiras, carregarem em suas bagagens sem reclamarem ou sequer, sentirem o peso da grande responsabilidade.

Como o universo das cadeias é gigante e totalmente invisível, e uma invisibilidade tamanha, que exclui todas as mulheres que fazem parte dele, independentemente de gênero. E a solidão é a única e fiel companheira no cárcere, dentro e fora dele. A sociedade, por pura conveniência, prefere não enxergar aquelas que, muitas vezes, só querem ser olhadas com o mínimo de humanidade.

Mas, qual o tratamento dado a estas mulheres poderíamos esperar de uma sociedade patriarcal, machista, sexista, misógina e preconceituosa, e porque não dizer, perversa? Mas quando falo de sociedade é claro que estou incluindo também os governantes, os políticos, o poder público em geral, que se alimentam da desgraça alheia, que em troca de votos mascaram a dura realidade das cadeias brasileiras, principalmente a das femininas, que são totalmente desassistidas. Homens ambiciosos, poderosos e bem machista, que ignoram por pura conveniência e covardia as condições desumanas das mulheres encarceradas e visitantes de presídios e centros socioeducativos.

Como a reportagem do Dr. Drauzio Varella foi – e é – tão necessária. Ele jogou luz e ascendeu um holofote em um tema que a grande maioria prefere que fique na escuridão. Aquele abraço dado em uma mulher trans, presidiária, soropositiva, que está há quase 8 anos sem receber uma única visita de seus familiares, com certeza foi sentido por todas as mulheres, independente de gênero, cor, raça ou religião. Mulheres que estando dentro aguardando visita, ou fora aguardando nas filas para visitar. E são elas também que mantêm as prisões de pé, em movimento e dando bastante lucro para os abutres que vivem miséria do pior lugar onde um ser humano pode cair, principalmente quando este ser humano é uma mulher.

 

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Carla Regina
Sou estudante do último período da faculdade de Jornalismo, gosto muito de ler e de escrever. Me acho simpática, pelo menos é o que me dizem as pessoas quando me conhecem, mas creio que eu seja sim, pois adoro fazer novas amizades e conservar as antigas. Comunicativa, dinâmica e muito observadora, um tanto polêmica. Gosto muito de trabalhar em equipe, mas, dependendo da situação, a minha companhia para trabalhar também é ótima. Pois, na minha opinião, a solidão aguça a criatividade, fazendo com que a mente e os pensamentos fluam um pouco melhor. Comecei a trabalhar muito nova, ainda quando criança e já fiz muita coisa na vida, mas meu sonho sempre foi ser Jornalista e Historiadora, cheguei a ter muitas dúvidas de qual faculdade cursar primeiro, já que para mim as duas carreiras são maravilhosas. Então, resolvi entrar primeiro para o Jornalismo e no decorrer do curso percebi que cursar a faculdade de História não era só uma paixão, mas também uma necessidade para linha de jornalismo que que pretendo seguir. Como sou muito observadora e curiosa, as duas profissões têm muito a ver com minha pessoa. Amo escrever e de saber como tudo no mundo começou, até porque. tudo e todos tem um passado, tem uma história para ser contada.