O coletivo Fala Subúrbio promove em Honório Gurgel, Zona Norte do Rio, constantes sessões de cinema no Bar Cambalacho, na rua Ururaí, 1.506. O telão fica na calçada, os vizinhos levam suas cadeiras e o tema do filme é debatido. No lugar da pipoca, um churrasco, para o qual cada um “chega junto” com um pedaço de carne.
Nenhuma sessão de cinema foi mais debatida do que a do documentário Menino 23, de Belisário França, que conta a história da família Rocha Miranda. Infelizmente, essa família tradicional do Rio que deu o nome ao bairro construiu sua fortuna e “respeito” com a escravidão, o que é focado no filme. Até 1948, a família pegava crianças pobres e negras abandonadas nos orfanatos da cidade e as levava para suas fazendas no interior paulista, para trabalhos forçados em olaria.
Na década de 1950 foi construído no bairro o Cine Guaraci, um cinema de rua com mais de 1.300 poltronas e com requintes de mármore de carrara. A construção foi realizada pela família, que se orgulhava da velocidade da obra, finalizada em três anos. Na produção de tijolos realizada com trabalho escravo, as peças tinham a suástica cravada, o símbolo nazista do governo do Terceiro Reich de Hitler.
Desde o fechamento e abandono do Guaraci, no início da década de 1990, moradores da região reivindicam transformar o prédio em centro cultural e de memória. Mas, após a exibição do filme, passou a ser reivindicação que o nome do bairro mudasse. Afinal, quem quer morar em um lugar que homenageia criminosos?
Na segunda edição da Festa Literária da Portela (Fliportela), que deve acontecer neste semestre, será lançado um movimento pela mudança do nome do bairro e em defesa da reabertura do Guaraci como centro cultural. A iniciativa tem apoio de peso.
“A Comissão Nacional da Verdade da Escravidão e o Conselho Federal da OAB já realizaram mais de 100 exibições do filme Menino 23. As Comissões têm trabalhado muito na questão simbólica. Mas, sobre Rocha Miranda, será algo muito importante trazer para o campo material, já estabelecendo a mudança do nome do bairro, e o cinema como indenização também. É um início da reparação objetiva da escravidão”, afirma Humberto Adami, presidente da Comissão Nacional e da OAB-RJ.
* Matéria publicada no jornal A Voz da Favela, Rio de Janeiro, fevereiro 2020.