Era o terceiro dia na favela do Canindé, Zona Norte de São Paulo, às margens do Rio Tietê. O jovem jornalista que havia planejado incursão de uma semana em lamentável absurdo social, inesperadamente depara-se com o tecido do destino. Impacto que carregaria por toda vida. Seu intuito era observar e apreender a situação de abandono e miséria. As casas que via eram barracões de madeira, que em dias de chuva dejetos e lixos do rio, dominavam tudo, as ruas, as casas, as vidas e, com eles, os ratos.
Em um pequeno e recente parque infantil, homens feitos, como diria mais tarde, verdadeiros marmanjos, ocupavam brinquedos. Tentou em vão convencê-los. Então, operou-se uma voz, que dizia: “Se não pararem, vou colocá-los no meu livro”. A posição era oriunda de uma mulher de imagem forte, alta, negra. Expressou-se indignada, franca e claramente. Desencadeando em segundos a ordem que resolveria a questão, afastaram-se.
Audálio Dantas deslumbrou-se, havia encontrado a matéria, a qual avidamente buscava. Ela apresentou uns cadernos sujos, encontrados na rua, em que relatava sua condição, a vida dos seus pares e sua revolta diária. Uma escrita crua, testemunhal, rasgante, cortante, como faca de açougue para os olhos dos que ignoram.
“Eu não havia escrito uma linha sequer, mas a reportagem estava, de fato, naqueles cadernos, especialmente em um que continha um diário iniciado três anos antes, em 15 de julho de 1955, pela favelada Carolina Maria de Jesus, moradora do Canindé”. Ela vivia “de apanhar papéis no lixo para vender”, disse o jornalista. Carolina tinha 44 anos e três filhos, sem pais, ainda pequenos.
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Carolina era parte de uma população em movimento, errante em eterno. Nasceu em Sacramento, cidade campesina de Minas Gerais, por volta de 1914, provavelmente, até onde se sabe. Na iminência de sua formação estava a figura de seu avô, ex-escravo de origem Banto* e que se encontra de certa forma em sua literatura, representado como o ancestral.
*Os bantos tiveram participação expressiva na formação da cultura e do povo brasileiro. Várias palavras do português falado no Brasil têm origem no quimbundo, uma língua banta de Angola. Uns exemplos são: moleque, cafuné, quilombo, caçula, macumba, senzala, fubá e farofa. Na música, o gosto dos bantos pela dança e pelos instrumentos de percussão teve influência decisiva em ritmos brasileiros como o samba, a bossa nova, a congada e o maracatu. Também são de origem banta o berimbau, a cuíca e a capoeira.
“Onde o exercício da formação moral e da busca do caminho reto era feito por meio de diálogos e provérbios, muitas vezes pictografados em tecidos e cerâmicas” e o avô “comandava a reza do terço em Sacramento, o que lhe conferia autoridade moral e proeminência na comunidade” segundo a historiadora Elena Pajaro Peres USP pesquisa de pós-doutorado sobre a diáspora africana nos manuscritos de Carolina.
Outra personagem de surpreendente importância fora Manuel Nogueira, oficial de justiça em Sacramento. Em frente a farmácia lia para os negros analfabetos, todas as tardes. Alimentava o entendimento de lutas e reinvindicações. Os instigava profundamente através dos poetas abolicionistas do romantismo brasileiro, como Castro Alves. Ideias intelectuais de Rui Barbosa e José do Patrocínio, como os jornais, periodicamente lido provocava o exercício crítico. Segue essa particularidade, com força revolucionária:
“19 de maio de 1958. Deixei o leito às 5 horas. Os pardais já estão iniciando a sua sinfonia matinal. As aves devem ser mais feliz que nós. São irracionais. Talvez entre elas reina amizade e igualdade. […] O mundo das aves deve ser melhor do que o dos favelados, que deitam e não dormem porque deitam-se sem comer. […] Havia pessoas que nos visitava e dizia: ‘Credo, para viver num lugar assim só os porcos. Isto aqui é o chiqueiro de São Paulo’. Trecho contido no diário de Carolina.
Passou dois anos na escola espírita Allan Kardec, de métodos avançados, onde Carolina tomou gosto pela leitura. Uma vizinha que compreendeu sua necessidade emprestou “A escrava Isaura”, do romântico Bernardo Guimarães. O primeiro livro que leu inteiro. A partir daí, simplesmente devorou tudo o que lhe caía em mãos.
“Desde Camões até os românticos brasileiros, os poetas eram sua preferência, mas também escritores franceses renomados e folhetins. Há uma diversidade de literatura que a acompanhou por toda vida e que fez com que ela ganhasse um gosto e recriasse isso na sua literatura” segundo a historiadora Elena Pajaro Peres, pesquisa de pós-doutorado, na USP.
Decidiu sair de Sacramento aos 17 anos, porque não se conformou com o que passara. Havia sido acusada que roubar o dinheiro da igreja. Presa, apanhara. Sem a confissão, insatisfeita a polícia prendeu a mãe e a surrou também. Foi quando o padre achou a quantia, Carolina foi libertada, para desesperadamente percorrer a estrada.
Viveu assim uns seis anos. De cidade em cidade, realizando trabalhos temporários, suprindo necessidades imediatas, até chegar nos anos 1937 em São Paulo, sozinha e sem livros.
No entanto os reencontrou na vasta biblioteca da casa na qual foi empregada. Lá ficava os finais de semana inteiros, a ler e a sonhar.
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“O drama da favela escrito por uma favelada” fora o título da reportagem de Audálio Dantas publicada na edição de 9 de maio de 1958, na “Folha da Noite”, depois de colocar sobre a mesa alguns cadernos de Carolina para o editor. Nas primeiras páginas lidas por Hideo Onaga, já comenta: “Isso dá um livro!”.
“Escritora, lavradora, catadora de papel, compositora, sambista, poetisa, dramaturga, cantora, atriz circense, raizeira [quem usa raízes em tratamento médico]”, assim a descreve a historiadora Elena Pajaro Peres em sua tese de doutorado Exuberância e invisibilidade.