O Presidente da República, Jair Bolsonaro, em menos de 24 horas, derrubou o artigo 18 da Medida Provisória 927, que autorizava a suspensão de contrato por parte dos empregadores por até 4 meses sem pagamento dos salários. A medida, para conter os impactos econômicos causados pela crise do COVID-19, havia sido amplamente criticada nas redes sociais e veículos de imprensa, assustando logo cedo trabalhadores, que assistiram ao presidente da república “voltar atrás” em uma live horas depois.
O episódio é muito ilustrativo, pois escancara diversas fragilidades das peripécias políticas do atual governo. Uma delas, desde o inicio do mandato, é a recorrente tática do presidente de fazer uma afirmação, ou política pública megalomaníaca, e logo adiante, banhado em críticas, tentar explicar o inexplicável, fazer reconsiderações, tomar novos posicionamentos e, principalmente, atacar a imprensa (esses seriam os grandes inimigos do governo nesse enredo). Outra delas, deixada nítida pelo episódio aqui comentado, é demonstrar o exato papel de um governo que segue a cartilha do neoliberalismo.
Podemos resumir Neoliberalismo como uma filosofia político-econômica que prevê o menor envolvimento do Estado na regulamentação do mercado. Em sua campanha e em seu primeiro ano de mandato, o presidente costumava dizer algo como: ou temos direitos, ou temos emprego. Pois bem, o papel do governo nesse tipo de política é exatamente essa, tirar os direitos dos trabalhadores para que o empregador (patrão) tenha maiores lucros, gerando mais empregos (resumidamente: se meter menos nos assuntos envolvendo patrão-empregado). Ocorre que os números mostram o contrário, a taxa de desemprego se mantém firme e cada vez é maior o número de informais e autônomos.
Diante dessa política, que podemos entender como, no mínimo, agradável para os empresários e patrões, temos o trabalhador comum. Esse, entre a espada e a chibata (perdoe a referência) se desdobra como pode, desde a aceitação de salários cada vez menores, até cargas de horário semanais mais extensas. Em um manifesto/desabafo de um motoboy, Paulo Lima, divulgado em vídeo pelo site The Intercept Brasil, fica claro o abandono dos diferentes aplicativos de entrega e serviços de transporte, como Ifood e Uber, nesse momento de crise sanitária. Outro escancaramento, colocado pelo autor do vídeo, são as péssimas condições de trabalho que esses estão sujeitos. Em função da crise, essas condições se agravam, tendo o trabalhador comum que se sujeitar à exposição à doença. Cabe, ainda, adicionar outra objeção pertinente de Paulo, que reclama a propaganda que faz desses aplicativos, ao carregar suas logomarcas nas costas, sem ganhar nada por isso.
Da crise empregatícia, desencadeada pela estrutura de poder que hoje está nas mãos dos patrões e empresários, temos a crise habitacional. O Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, assumiu que há um enorme impacto as formas de habitação em que a maioria de nós vive: as favelas. Isso por que, em um cenário de pandemia onde a distância e a higiene são fundamentais, diversos territórios não têm acesso à água potável, por vezes nem mesmo água corrente. Além disso, as moradias nas periferias são cada vez menores e mais densas populacionalmente, impossibilitando uma das principais recomendações em caso de contágio, a quarentena domiciliar.
Esses problemas, enfatizados até agora, têm raízes muito mais profundas na história do Brasil. Lembremos que, por volta das década de 1920 e 1930, o país dependia impreterivelmente da exportação de café. Quando os grandes fazendeiros viram a curva do lucro cair, o governo brasileiro criou diversas formas de ajuda aos grandes proprietários, inclusive queimando café e desvalorizando a moeda nacional. Ao ruir a política do café com leite, o país entrou na Era Vargas e na Nova República, com grande direcionamento do setor produtivo para o setor secundário (as indústrias). Veja que, mais uma vez, tínhamos o governo brasileiro adotando meditas para que a economia funcionasse. Em meio às transformações socioespaciais que seguiram, o grande aumento da favelização nos dá dicas de “para quem” os políticos governavam.
Tal como ocorreu na Velha República, o governo brasileiro continua priorizando os grandes empresários. As medidas tomadas até aqui mostram um país com graves problemas sociais, historicamente construídos, e que agora funcionam como um efeito dominó populacional. Segundo alguns empresários e “celebridades”, “15 mil mortos para 7 bilhões de habitantes é um número muito pequeno”. Acontece que essa guerra sanitária só está no começo, e além do governo levantar medidas que só ajudam aos grandes empresários, as maiores baixas nesse front, certamente, serão da população mais pobre. Me apropriando de fragmento da fala de Paulo Lima em seu vídeo, a gente, trabalhador, tem se sentido os músicos do Titanic: estamos vendo o barco afundar e temos que continuar tocando a música.
Show do Milhão. Compilei uma seleção de falta de empatia porque no futuro, quando contarmos, ninguém acreditará. pic.twitter.com/pZkSJT9acP
— Maurício Ricardo (@MauricioRicardo) March 24, 2020