Por Eduardo Sá

Indignados com o modelo de segurança pública atual, movimentos sociais, defensores dos direitos humanos e entidades da sociedade civil se organizaram para marcar uma posição alternativa à 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública (Conseg), que será realizada no final do mês de agosto deste ano.

O 1º Encontro Popular pela Vida e por Outra Segurança pública já ocorreu no Espírito Santo e, nos dias 8 e 9 de agosto, foi a vez do Rio de Janeiro, na UFRJ, receber cerca de 200 pessoas, simultaneamente a outros estados, como São Paulo e Paraná. Entre os dias 14 e 16 será o encontro em Salvador, na Bahia.

O tema segurança pública não se restringe à questão da violência, daí a abordagem no evento de aspectos que vão desde a cultura popular e educação à disseminação da criminalização da pobreza nos meios de comunicação. Na etapa fluminense, houve também apresentações da Companhia Marginal de Teatro, do Complexo da Maré, retratando a opressão sofrida pelos moradores no dia a dia das comunidades cariocas e da sociedade em geral, como a questão do gênero ao denunciarem o machismo ainda imperante.

Segundo Maurício Campos, da entidade Rede Contra Violência, uma das organizadoras do encontro, a realização tem dois objetivos: “reafirmar e aperfeiçoar concepções e propostas sobre uma segurança realmente pública (e não uma “segurança” para as elites dominantes, como existe hoje), acumulada em anos de luta de movimentos sociais e organizações defensoras dos direitos humanos, e fortalecer a organização e a resistência à situação atual, principalmente daqueles setores diretamente atingidos pela violência do Estado”.

A conferência de abertura contou com a participação de Cecília Coimbra, do grupo Tortura Nunca Mais; Sandra Quintela, socióloga do Instituto Políticas Alternativas para o Cone-Sul; e Roberto Leher, professor da Faculdade de Educação/UFRJ. As falas se complementaram, para eles não há como mudar o modelo de segurança sem uma mudança de sociedade: serviços fundamentais como educação, habitação, saúde, transporte, dentre outros, inclusive o trabalho, não são disponíveis para todos. Portanto, para conter esse “excesso populacional”, pessoas são mortas, presas e reprimidas em determinados “territórios perigosos”, termo que o geógrafo Milton Santos utilizava.

Leher ressaltou a “formação de consensos coercitivos” que o sistema capitalista utiliza como controle social da pobreza, numa “política que pressupõe violência em sua estratégia”. Sandra Quintela contextualizou o processo de resistência na América Latina: primeiro os índios contra o genocídio, depois os negros na escravidão, também os operários na industrialização, em seguida a sociedade em geral com os golpes militares e adiante na privatização com as multinacionais. Nesse contexto, há hoje uma “militarização das periferias urbanas”, cujo Rio de Janeiro, segundo a socióloga, “é um grande laboratório dessa lógica” e de uma estética que a gente vai naturalizando.

Aproveitando a menção ao Rio de Janeiro, Cecília Coimbra se encarregou do assunto ressaltando alguns pontos fundamentais: a “judicialização do cotidiano”, a superlotação das prisões, o extermínio de parcelas da sociedade, os autos de resistência que legitimam execuções, etc. Ela afirmou que, segundo a informação de Leonardo Chaves, subprocurador de Direito Humanos, há cerca de 10.000 desaparecidos no estado. E mencionou também a mídia, que fabrica o terror e o medo: “temos que estar alertas com as palavras, elas estão produzindo sentidos”, referindo-se a utilização dos termos “unidade pacificadora” que estão sendo instalados nas favelas cariocas.

Na atividade sábado (9/08), pessoas relataram os desafios a enfrentar nas suas diversas áreas de atuação: a luta de familiares de vítimas mortas pela polícia carioca; o combate às milícias; os problemas gerados em ocupações em favelas; a educação em regiões que ocorrem conflitos entre o tráfico e a polícia ou entre traficantes; a moradia popular; a cultura popular; a defesa da juventude negra que está sendo dizimada no país; a repressão aos movimentos sociais; na mídia, com a homogeneização da informação que se encontra oligopolizada; na justiça, que penaliza sistematicamente os pobres e movimentos sociais.

O deputado estadual, Marcelo Freixo (PSOL/RJ), por exemplo, relatou sua experiência na presidência da Comissão de Inquérito Parlamentar (CPI) sobre as milícias, no estado do Rio de Janeiro. Para ele as milícias têm seu auge no ano de 2006, quando saem da uma organização criminosa economicamente viável para a politicamente viável, tornando o crime um projeto de poder. Graças à CPI, que contribuiu para a prisão de mais de 70 pessoas, houve uma vitória pedagógica, pois a lógica da milícia foi quebrada: ninguém mais vai aos meios de comunicação afirmar que se trata de um mal menor, por exemplo. Mas ressalta que a polícia não tem condições de acabar com as milícias, seu combate é um dever do poder público, sobretudo do Legislativo.

No que diz respeito à educação, tema essencial para qualquer proposta de avanços numa sociedade, Roberto Marques relatou suas experiências como professor na rede pública municipal. Na Vila Cruzeiro, comunidade situada no Complexo do Alemão, quando ocorreram operações policiais em massa graças ao Pan Americano realizado na cidade, ele se viu numa escola recebendo alunos de outras seis escolas. Ou seja, sete escolas funcionando numa só: deu aulas com cerca de 80 alunos em uma sala, “cumprindo horário” exigido pelos burocratas do ensino, a fim de “salvar o ano letivo” e manter as estatísticas.

No final, foram tirados grupos temáticos para deliberarem propostas a serem apresentadas no encontro nacional na Bahia, em seguida ao encontro regional no mesmo Estado. O documento final que será apresentado menciona o relatório de Philip Alston, relator da ONU para execuções sumárias e extrajudiciais, publicado em 2009: “no Brasil os policiais matam tanto em serviço como fora de serviço e nenhuma investigação é feita já que todos os índices se justificam a partir de ‘autos de resistência’ ou ‘mortes em confronto’”.

Será feita uma moção em solidariedade ao povo haitiano contra a ocupação das tropas MINUSTAH, há cinco anos no país. O documento reivindica também, dentre outras questões, uma Comissão Especial para localização, recolhimento e identificação dos corpos dos guerrilheiros mortos e desaparecidos na guerrilha do Araguaia e a abertura de todos os arquivos militares da época.