O rapper MV Bill lançou na última sexta-feira o single “Quarentena”, rap sobre o perigo que a epidemia do Covid19 representa para as favelas e os mais pobres. A música foi composta, gravada e filmada sozinho em sua casa na mesma velocidade que o vírus se espalha, com forte critica ao descaso e despreparo das autoridades brasileiras. Nessa entrevista que foi concedida também de sua casa o rapper nos conta um pouco dessa nova rotina na Cidade de Deus e de como enxerga o momento e o futuro.
ANF – A música “Quarentena” em menos de uma semana de lançamento já atingiu um número expressivo de reproduções e repercussão. A mensagem pra população como um todo e em especial aos povos periféricos do Brasil é certeira: se conscientize, fique em casa e se cuide. Como tem sido para você estes dias em quarentena?
MV Bill – Esses dias tem sido tensos, porque ficar de quarentena já é um esforço e também um privilégio para poucos. Muitas pessoas precisam garantir o sustento e é sufocante quando acompanhamos as notícias. Tanto pelo avanço da doença quanto ao preparo que o país tem para enfrentar a situação. Acabei de descobrir que uma pessoa próxima de mim aqui da CDD (Cidade de Deus) contraiu o vírus e por ter baixa imunidade, apesar de jovem, tomada pelo desespero tem chorando e se despedindo dos filhos e amigos. A situação nos deixa temerosos e acho que a música Quarentena veio em um momento em que ela exerce dois papéis. O de mostrar que o país não está se preparando da maneira correta e o de alertar que se chegar como já está chegando as favelas o estrago pode ser muito maior.
ANF – E como você vê a aderência dos moradores da CDD em relação ao isolamento social, e como eles tem se organizado coletivamente perante a situação?
MV Bill – Aqui na CDD eu percebo duas realidades: A das pessoas que não tem tanta noção assim da pandemia, talvez por falta de informação ou por ignorar os fatos e a das muitas pessoas que não tem condições de se manter em quarentena por causa de seus empregos. A barra da tijuca por exemplo é o bairro nobre mais próximo aqui da CDD é um dos epicentros na cidade. Quem serve ao povo da barra em todo tipo de serviços muitas vezes são moradores aqui da CDD que precisam sair de casa pra trabalhar em lugares onde os patrões podem ter sido infectados, e sem o devido cuidado estas pessoas podem levar o vírus adiante na favela. Pelo que tenho visto o caminho é o isolamento social que é a sugestão da OMS. Os que não podem necessitam de mais instrução sobre os cuidados além de passar o exemplo aos próximos mais céticos.
ANF – A música apresenta uma contundente crítica social que é característica da sua lírica como no trecho que diz: “Na favela, pra nós a COVID é diferente/As casas não são grande e geralmente muita gente/Aglomeração inevitável Alguns lugares ainda não tem água potável/Se cuida aí Ih, que vai faltar espaço na UTI/Se a gente não fizer o certo pra se previnir”. Além da preocupação com as condições de habitação e saneamento básico, há também o fato que grande parte da população das favelas exerce trabalho autônomo e impedidos de trabalhar ficam entre a cruz e a espada vendo a crise se instalar em suas casas. Na ausência de planos de contingência você vê algum movimento?
MV Bill – Tenho visto bastante nas favelas uma rede muito grande de solidariedade e pessoas se mobilizando por entender que a fome tem acontecido em muitos lugares principalmente nas favelas. Tem muitas aqui na cidade que não tem nem o básico como água potável e o que me chama atenção é este movimento apartidário e não governamental de solidariedade. Não adianta pensar apenas em uma parte da população esquecendo da outra, é lutar pra salvar ao máximo de pessoas independente de raça ou classe e estas pessoas mais solidárias não necessariamente moradoras de favelas estão começando a entender que é preciso fazer algo a mais por essa parte da população se não quisermos contar os mortos. Algumas organizações já existiam, outras surgiram nesse momento. O Celso Athayde (parceiro fundador da CUFA) tem feito movimentos muito importantes e está sempre antenado as necessidades dos povos periféricos e toda essa mobilização me deixa muito feliz.
ANF – Na letra tem algumas referências ao chefe do Executivo e seus discursos irresponsáveis que dividem opiniões e incentivam a população a minimizar a gravidade do momento. Depois desses discursos notei aqui na comunidade o aumento do fluxo de pessoas. Qual a sua percepção desde os pronunciamentos?
MV Bill – Bom eu fiquei bastante confuso porque estava e continuo seguindo as recomendações do ministério da saúde e da OMS, e acho um caminho errôneo qualquer indicação que vá em sentido oposto as mesmas. Na ausência de vacina ou medicação o isolamento tem se mostrado a forma mais eficaz de conter a disseminação. Giuseppe Sala, prefeito de Milão se arrepende profundamente de ignorar os alertas ao fazer a campanha #MilãoNãoPara.
O próprio Trump que também chamava o vírus de “gripezinha” mudou o discurso ao ver o avanço rápido podendo tornar os estados unidos o epicentro mundial e tem criado planos de contingencia ao vírus e de apoio financeiro a população. Como lá é “primeiro mundo” talvez consigam salvar muitas pessoas e restabelecer a economia, já aqui no brasil se houver a percepção de que é um erro manter a população nas ruas talvez tenhamos mais a frente uma chance de conter este avanço. Por isso reforço a importância de a quem for possível, mantenha se sem casa, cuide dos seus pais e avós, dos seus “velhos”.
ANF – Você enquanto artista, ativista e comunicador tem acessado e ocupado espaços há anos levando a voz das favelas mais longe sempre com uma mensagem consciente. Qual a função os nossos que tem ascendido nos mais diversos espaços nesses tempos de inquietude pra ajudar as suas comunidades e aos seus de forma efetiva?
MV Bill – Neste momento é muito importante os lideres, mesmo os que não sejam lideranças comunitárias locais mas que exercem influencia se mobilizem e mobilizem aos outros, e usando este engajamento essas pessoas são muito importantes na conscientização, arrecadação de alimentos e em vários outros aspectos que podem surgir. Pelo que vemos na experiencia de outros paises, tem que ter um trabalho de preparar toda a população e se na favela não houverem estes cuidados estamos próximos de uma tragédia.
ANF – No final da música tem um verso que diz: “O mal é contagioso mas o bem é contagiante/Lá na frente a gente se vê…ou não/Fé em nós”. Esse trecho traz um misto de esperança e insegurança em sobre nosso futuro pós pandemia. Como você nos imagina após estes processos?
MV Bill – Bom, o futuro é muito incerto. Aqueles versos eu escrevi exatamente como me sinto. Ao mesmo tempo que estou me protegendo com o isolamento tem a incerteza de não saber o que nos aguarda a frente mas uma certeza eu tenho: Nunca mais seremos os mesmos.
Assista aqui: https://youtu.be/NQiykuwYLSk