Bolsonaro ajuda igrejas a sonegar os poucos impostos que devem

Ilustração igrejalivrememovimento.com

Matéria divulgada nesta quarta-feira (29) pelas repórteres Idiana Tomazelli e Adriana Fernandes, do Grupo Estado, diz que “o desejo do presidente Jair Bolsonaro de fazer um aceno aos evangélicos foi um dos motivos para sancionar, em 14 de abril, o fim do voto de qualidade no Carf, tribunal administrativo da Receita Federal, segundo duas fontes ouvidas pelo Broadcast, de O Estado de S. Paulo. A medida ampliou o poder dos contribuintes no órgão e, na prática, facilita a anulação de multas e penalidades aplicadas pelo Fisco aos sonegadores de tributos.

O Carf reúne representantes da Receita e dos contribuintes. Pelo mecanismo do voto de qualidade, os auditores fiscais detinham o “voto de desempate” nos julgamentos. A tentativa de acabar com o instrumento é antiga no Congresso Nacional, mas emplacou pela primeira vez no governo Bolsonaro. Na prática, seu fim dará vitória aos contribuintes sempre que houver empate nas votações. A medida é especialmente importante para as igrejas porque muitas delas vinham acumulando derrotas no Carf.
Mesmo com a mudança, muitas autuações continuam de pé ainda no âmbito da Receita, antes de chegar ao tribunal. Por isso, as igrejas pressionam o Palácio do Planalto e a Receita Federal para conseguir afrouxar regras e afastar as cobranças. Uma reversão nas autuações poderia até pôr fim às apurações de eventuais crimes iniciadas a partir dessas cobranças.
Um dos pontos centrais da discórdia é a prebenda, como é chamado o valor recebido pelo pastor ou líder do ministério religioso por seus serviços. A lei diz que a prebenda não é considerada remuneração, ou seja, é isenta de contribuições à Previdência. Mas o próprio texto condiciona o benefício ao pagamento de um valor fixo, sem parcela variável conforme a natureza ou a quantidade do trabalho.
A Receita começou a identificar nos últimos anos que igrejas se valiam da prebenda para distribuir participação nos lucros e pagar remuneração variável de acordo com o número de fiéis ou conforme a localidade do templo. A lógica é conceder pagamentos mais gordos a quem tem os maiores “rebanhos”. O Fisco começou então a lançar autos de infração e cobrar os tributos devidos com multas e encargos sobre a parcela variável da prebenda.
Em um vídeo publicado nas redes sociais em outubro de 2016, o missionário R. R. Soares, fundador da Igreja Internacional da Graça de Deus, agradece ao então presidente da Câmara Eduardo Cunha, ligado à bancada evangélica, pela aprovação de uma lei em 2015 que buscou colocar um ponto final às cobranças. Nessa lei, criticada pela Receita, o Legislativo tentou frear as autuações dizendo que valores pagos a título de ajuda de custo de moradia, transporte e formação educacional são isentos de tributação.
O Fisco reagiu exigindo a comprovação desses gastos e continuou aplicando multas nos casos sem a devida documentação ou sobre outros tipos de parcelas pagas aos pastores. Enquanto isso, abriu-se uma verdadeira queda de braço em torno do passivo acumulado. Os templos querem anulação automática de multas aplicadas antes da nova lei, mas a interpretação da Receita é que a norma não retroage, ou seja, as cobranças anteriores continuam valendo.
Na avaliação de fontes ouvidas pelo Broadcast sob a condição de anonimato, as igrejas também infringem a lei ao distribuir parte dos seus lucros obtidos com o dízimo dos fiéis, mesmo que de forma disfarçada por meio de contratos de prestação de serviços. O Código Tributário Nacional (CTN) condiciona a imunidade tributária à não distribuição de “qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título”. Mas a Receita identificou uma série de mecanismos para burlar as regras e remunerar seus dirigentes, com pagamentos a empresas e escritórios de advocacia, o que gerou outra leva de autuações.
Segundo relatos colhidos pela reportagem, o impasse em torno das prebendas contribuiu inclusive para o desgaste do ex-secretário Marcos Cintra junto a Bolsonaro. Ele deixou o governo após insistir na criação de um tributo nos mesmos moldes da CPMF, contrariando o presidente, mas fontes afirmam que a pressão das igrejas e a falta de uma solução por parte do ex-secretário também colaboraram para sua saída.
A Igreja Universal, que tem processos em andamento no Carf, chamou de “especulação tão fantasiosa quanto mentirosa” a participação das igrejas na derrubada do fim do voto de qualidade no tribunal. A instituição diz não ter tratado do tema com qualquer autoridade. A Igreja Internacional da Graça de Deus não respondeu aos questionamentos sobre esse ponto. Tanto a Receita quanto o Ministério da Economia não quiseram se manifestar. O Palácio do Planalto não respondeu.”
(Originalmente publicada no Broadcast, do Estadão)