Favelas contra o Coronavírus na Maré

Não é de hoje que o Complexo de Maré, na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, é protagonista de mudanças que trazem dignidade e melhoria para os moradores. O saneamento básico por exemplo: apenas 0,3% ainda não tem água canalizada, já o lixo é coletado na porta de 71,5% dos domicílios, por outro lado 26,4% das casas os moradores levam o lixo até um local de coleta. Entretanto o tratamento de esgoto ainda é uma incógnita não só na Maré. Pois para muitas comunidades da capital, quase todas na verdade, não há definição sobre a coleta e o tratamento. A Maré luta pela paz, por mais cidadania e direitos e, como tantas outras comunidades, deseja ser ouvida. Ainda mais agora nesse período de pandemia. Mas, esperar sentado não é opção, inúmeras são as ações que surgem para conscientizar e ajudar o complexo a vencer esse vírus.

Gizele Martins é nascida e criada no Complexo da Maré, conjunto de 16 favelas com cerca de 140 mil habitantes. Jornalista, ativista social e comunicadora comunitária, ela ajudou a criar a Frente de Mobilização da Maré, movimento criado para preparar a comunidade para a chegada do novo coronavírus.

O principal objetivo é distribuir, de maneira ampla, efetiva e de acordo com a realidade da favela, informações baseadas nas recomendações divulgadas pelo Ministério da Saúde, pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Fiocruz sobre os cuidados e riscos da Covid-19.

Hoje, a Frente conta com a participação de moradores das diversas favelas do complexo. O maior problema é que nem todos têm acesso às informações da imprensa, nem mesmo internet.

“Estamos trabalhando com carros de som, cartazes nas igrejas, nas associações e nos comércios de todo o conjunto de favelas da Maré, além de produção de artes pelas ruas, faixas e produção de vídeos, artigos e imagens”, explica Gizele.

Em entrevista ao Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil (UNIC Rio), ela conta que uma grande dificuldade é a manutenção do distanciamento social. A condição de vida nas favelas – falta de saneamento básico, problemas no abastecimento de água potável, casas muito pequenas, abafadas, superlotadas e muito próximas umas das outras – é o principal desafio na prevenção da Covid-19.

A preocupação com a sobrevivência também influencia na decisão das pessoas permanecerem em casa. “A maioria dos moradores é de trabalhadores informais. As pessoas trabalham para comer, o que também faz muitas pessoas continuarem tentando manter seu pequeno comércio, indo para as ruas. Ou seja, elas se colocam em risco”, relata a comunicadora.

Para ajudar os moradores, a Frente de Mobilização da Maré está administrando grupo de doações de alimentos e materiais de higiene que serão distribuídos a pessoas em maior situação de vulnerabilidade na Maré.

Segundo pesquisa da Data favela, uma parceria do Instituto Locomotiva e da Central Única das Favelas (Cufa), 72% dos moradores de favelas no Brasil ficarão sem dinheiro em apenas uma semana de isolamento social.

Gizele conta que a solidariedade pedida pelo diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), o etíope Tedros Adhanom, é vista também na comunidade. “É um momento que não dá para pensar só em si, no seu isolamento social, é um momento para se pensar na coletividade, em si e no outro”, reflete a ativista.

E exemplifica: “Nem todos na favela têm água, então a gente complementa a mensagem de que a população deve lavar as mãos dizendo que nesse momento é mais que necessário a gente compartilhar a nossa água com a vizinha ou o vizinho que não tem”.

Multimídias que alertam

Um importante aliado no combate ao novo coronavírus no Complexo da Maré é a Fundação Oswaldo Cruz, que lançou em conjunto com a ONG Redes da Maré e com organizações comunitárias a campanha multimídia “Se Liga No Corona”. A iniciativa pretende difundir pelo complexo de favelas informações confiáveis e adaptadas ao contexto das periferias.

Cartazes, mensagens de áudio, radionovelas, peças e vídeos para as redes sociais são os principais materiais produzidos pela campanha. O material é difundido em áreas de grande circulação nas comunidade, a partir de alto-falantes, rádios comunitárias, estabelecimentos comerciais, pontos de ônibus e moto-táxi, associações de moradores e também com compartilhamentos online.

A Fiocruz, vizinha do Complexo de Favelas da Maré, teve recentemente seu trabalho científico laureado, ao ver seu Laboratório de Vírus Respiratórios e do Sarampo nomeado pela Organização Mundial da Saúde como Laboratório de Referência para Covid-19 nas Américas. Isto permite estudos genéticos e evolutivos visando o desenvolvimento de vacinas e tratamentos, apoiando laboratórios da região. A Fundação também é parceira da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e da Organização Mundial de Saúde (OMS) ao replicar as orientações e medidas de proteção das agências no combate ao novo coronavírus.

Cuidados – A higiene é essencial para combater a Covid-19. A OMS recomenda lavar, regularmente, as mãos com água e sabão ou com desinfetantes à base de álcool; cobrir a boca e o nariz com o cotovelo flexionado ou com um tecido quando ao tossir ou espirrar e, em seguida, jogar fora o tecido e higienizar as mãos; é necessário manter pelo menos um metro de distância de pessoas que estejam tossindo ou espirrando; e caso uma pessoa tenha febre, tosse seca e dificuldade de respirar, deve procurar atendimento médico assim que possível.

Censo Maré

A coleta de informações para elaborar a pesquisa começou em 2013 e o material completo está disponível no site da instituição. O Complexo da Maré envolve 16 favelas, numa área que margeia a Avenida Brasil. São elas: Conjunto Esperança, Vila Do João, Conjunto Pinheiros, Vila dos Pinheiros, Novo Pinheiros (Salsa e Merengue), Conjunto Bento Ribeiro Dantas, Morro do Timbau, Baixa do Sapateiro, Nova Maré, Parque Maré, Nova Holanda, Parque Rubens Vaz, Parque União, Parque Roquete Pinto, Praia de Ramos e Marcílio Dias. Em 1994 a região foi transformada no bairro Maré, excluindo-se Marcílio Dias, que integra o bairro da Penha Circular. O Censo abrangeu todas as favelas do complexo.

Ao todo, 158 pessoas atuaram no Censo Populacional, sendo 93 como pesquisadoras de campo e mais de 90% do total de moradores da Maré ou de outras favelas vizinhas. Foram identificados no complexo 47.758 domicílios e a entrevista foi feita em 43.941 deles, uma cobertura de 92,01%. O número total de moradores é de 139.073.

O coordenador do trabalho, Dalcio Marinho, explica que o projeto do Censo Maré começou em 2010, quando foi iniciada a atualização da malha cartográfica da região, em parceria com a prefeitura do Rio, por meio do Instituto Pereira Passos. Nesse processo, foram identificados 815 logradouros e em 2016 a prefeitura oficializou 505 ruas da Maré. O Guia de Ruas da Maré foi lançado em 2012 e atualizado em 2014, mesmo ano em que foi lançado o Censo de Empreendimentos Econômicos da Maré.

Marinho destaca que os dados do Censo mostraram que o número de moradores por casa não difere do restante da cidade, com a média de 2,9 pessoas por domicílio, ao contrário do que imagina o senso comum.

“As pessoas costumam pensar que na favela, nas periferias, os domicílios têm muitas pessoas. Essa é uma realidade já passada, nos últimos anos a taxa de fecundidade diminuiu bastante, a média de filhos por mulher já é muito baixa em todo o Brasil. Num tempo de um Brasil com população rural, que migrava para as cidades, a média de filhos por mulher era muita alta e isso era mais presente nas periferias e favelas. Hoje não, já há um equilíbrio”, descreve o coordenador do Censo Maré.

Por outro lado, ele ressalta que há diferença na idade dos pais, com as famílias nas favelas sendo iniciadas mais cedo. “É uma maternidade precoce, numa juventude, não diria na adolescência, em fase de estar ainda nos estudos para se preparar para o mercado de trabalho. Em segmentos com maior renda e maior escolaridade, os pais estão com essa idade média de primeiro filho um pouco mais elevada, acima dos 23, ou 24 anos. E aqui é mais precoce, média de 18 e 19 anos”.

A responsabilidade pelo domicílio também cabe a pessoas mais jovens na Maré. O censo mostrou que um em cada três jovens entre 20 e 24 anos já assume esse papel, sendo 16,8% na condição de único ou principal responsável e 20,5% compartilhando a responsabilidade. Na faixa de 25 a 29 anos 30,8% são únicos ou principais responsáveis e 22,1% compartilhando.