“Ao contrário do cenário desafiador e esperançoso da propaganda do Enem 2020, a manutenção do calendário de provas traz aos nossos educandos ansiedade, desmotivação e uma sensação ainda maior de exclusão”. A fala de Angela Santos, coordenadora do pré-vestibular comunitário do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), retrata bem a qual público o governo atual não está interessado em olhar. A Maré é um complexo de favelas formado por cerca de 16 comunidades localizado na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro.
A propaganda do Exame Nacional do Ensino Médio leva ao público a mensagem de que dá para estudar em tempos de pandemia e quarentena. Na tela, eles mostram adolescentes brancos, com seus computadores e celulares falando que existem muitos métodos para continuar os estudos. Aparência essa que muitas vezes não é encontrada nas favelas, periferias e comunidades Brasil a fora. ” ‘Se virem!’. Essa foi a tradução que uma aluna do nosso pré-vestibular fez da mensagem na propaganda do Enem”, comenta Angela.
Segundo a coordenadora, os alunos até possuem acesso à internet no celular, porém esse acesso é intermitente e depende das condições financeiras e de moradia dos educandos. “Em muitas áreas da favela as redes de 3G e 4G não pegam. Além disso, a maioria dos pacotes de dados limitam o acesso às redes sociais”, completa ela.
Em abril, quando foi entrevistado pelo site de notícias UOL, o presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), instituição responsável pela aplicação da prova, Alexandre Lopes, afirmou não ter propensões de adiar ou cancelar o Enem 2020. E ao ser questionado sobre a preocupação de educadores e secretários de educação com a permanência do Enem, no caso de prejudicar os mais pobres, a resposta foi clara:
“Quando várias pessoas, vários especialistas disseram que os alunos não iam conseguir fazer os pedidos de isenção porque não têm computador em casa, são pessoas totalmente fora da realidade, porque 70% dos pedidos foram feitos pelo celular. Então, eu acho que são pessoas que falam em nome dos mais necessitadas sem conhecer efetivamente a realidade deles”.
Segundo Angela, o governo fantasia uma normalidade não existente e coloca nas costas de alunos todo o peso e dificuldade que eles irão encontrar para conseguir estudar e fazer as provas, ignorando inclusive as pressões sociais e psicológicas de uma pandemia. “Quando o governo propõe um desafio que não é possível de ser realizado, certamente ele está destruindo sonhos e dizendo para milhares de estudantes: isso não é para você! Se trata de um problema estrutural e antigo de desigualdades sociais, que a pandemia só faz deixar transparecer ainda mais”, apontou a coordenadora.
Pré-vestibular comunitário CEASM
Com maioria dos inscritos moradores do próprio Complexo de Favelas da Maré, o projeto amplia a construção, a crença e o alcance de sonhos dos moradores de favelas e comunidades carentes. Para Angela, em uma sociedade que não é dada a permissão pro morador da favela sonhar, o pré-vestibular acaba sendo uma tentativa de ultrapassar muros enormes.
“A universidade pública nunca foi para todos. Então, querer acessar a educação superior e buscar um projeto de pré-vestibular popular são atos transgressores, mesmo que inconscientemente”, afirmou.
Com a quarentena, o projeto teve que se reinventar. Inicialmente, os organizadores do projeto optaram por continuar com o conteúdo e organizar um plano de estudos com rotina semanal de compartilhamento dos materiais pelo WhatsApp e no Blog da instituição.
“Porém, percebemos a dificuldade dos alunos em disponibilizar de internet para acessar os materiais diariamente; em estudar pelo celular, já que a maioria não dispõe de computador; em conseguir um ambiente adequado para estudar dentro de casa e criar sozinhos uma rotina de estudo”, apontou Angela.
Com a pandemia fica inviável a produção de materiais impressos, devido ao risco de contaminação. A atitude dos coordenadores do pré-vestibular foi a de construir aulões on-line interdisciplinares, que durem cerca de 2 semanas.
“As vídeo-aulas são produzidas pelos educadores e disponibilizadas no Blog a partir de um planejamento. Ainda assim tem sido difícil mantê-los motivados e ativos, dadas as circunstâncias da pandemia”, completou a coordenadora.