Modernadamente, possuir uma identidade é algo imprescindível e muito almejado por todos os meus colegas de mundo contemporâneo. Numa época em que até para se emocionar o sujeito precisa ser racional, sobra pouco para o exercício da individualidade, e isso é uma necessidade essencial dos representantes da nossa espécie. O negócio era que ou eu havia perdido a minha identidade ou tinham me roubado-a, e tendo em questão o alto preço a se pagar para ter outra identidade, eu passei algum tempo sem isso, sempre priorizava as necessidades práticas e objetivas que se me apresentavam com muito mais urgência e rigor.

            Belo dia escutei pelo rádio que o Governo, tendo em vista a imensa massa de indigentes em sua circunscrição, disponibilizaria identidades gratuitas para o Povo pobre de um jeito bem simples, bastava o pobre comprovar que era pobre tendo em mãos o “Certificado de Pobreza”. O próprio Governo era quem dava o tal Certificado, então anotei o endereço e fui até a casa da Burocracia em busca da sagração documental de minha pobre pobreza.

            Cheguei no local com uma hora de antecedência -imaginando que fosse ser um dos primeiros a serem atendidos- mas na saleta composta com cadeiras desconfortáveis já estavam um grupo de mais ou menos dez pessoas aguardando o atendimento pelo número recebido à entrada. Entrei, e depois de um certo silêncio de desconforto com a minha estranha presença, uma senhora gordona de pernas mapeadas de veias verdes anunciou: “Chegou mais um pobre!”, foi uma risarada só! Timidamente sentei e tentei sorrir também. Os aspirantes à Pobreza Oficializada voltaram às suas conversações e um homem do meu lado perguntou se essa seria a minha primeira identidade. Expliquei do sumiço da minha identidade antiga e que aquela experiência ali, para a retirada do “Certificado de Pobreza”, aquele momento de consagração da miséria é que eu ainda não estava acostumado.

…para mim aquele era o momento de declaração da minha derrota ante o mundo, sentia-me inteiramente desconfortável e envergonhado diante de tantos pobres assumidos, definitivamente eu não tinha vínculo com nenhum daqueles que ali estavam. De dentro do meu livro ouvia as conversas e as altas gargalhadas, que em contrário de harmonizar a minha agonia, aumentando-a ia…

O rapaz do lado, percebendo o desconforto aconselhou: “Take it easy my brother, isso é fácil fácil, basta se sentir pobre e responder o que a Burocracia quer ouvir. Não dói nada não”. Essas palavras vieram como um tipo de conforto de alguém que entendera a minha situação, pobre eu até era, sempre fui, o que me causava um certo desconforto era toda aquela humilhação pública só para se ter uma nova identidade. Aliás era só o que queria, uma identidade, não pretendia tornar-me um Duro Diplomado. Sentia que o simbolismo dessa atitude poderia trazer graves conseqüências, conseqüências piores até que a falta de dinheiro, pois às restrições da vida eu já tinha acostumado e até me virava razoavelmente bem, e só causava problemas no meu corpo. Mas ser um Pé Rapado de Carteirinha poderia trazer conseqüências irreversíveis para a minha alma.

Sou de família de bravos trabalhadores, sempre morei e comi com dificuldades, mas nunca deixei de sonhar com a sorte que pode trazer a vida. Meu pai sempre dizia “quem não rouba ou não herda, nunca sai da merda”, incentivando através da metáfora, a obtenção de pequenos lucros de maneiras escusas e a nobre esperança do elemento “sorte” que a vida oferece. Às refeições, enquanto comíamos carne de segunda, mamãe falava: “Quando formos abastados, quando Deus nos ajudar, quando dermos uma sortezinha na vida, só comeremos filé mignon! Comeremos de matar a fome!”. Vovô também era pobre, e acredito que o pai dele era também… Quem teria instaurado a miséria da nossa família?

Depois de um período de espera e algumas páginas de “O Alquimista” passadas, ouvi chamarem meu nome da porta da sala e num impulso levantei depressa junto com um homônimo, era a vez dele, voltei a sentar-me mais envergonhado ainda, parecia que os pobres, quase acostumados com a minha presença, voltaram a me notar, alguém deu um risinho de deboche. Que situação!

Enterrei meus olhos no livro e passadas algumas páginas do confortante best-seller de Paulo Coelho, meu nome foi chamado, aguardei os dois sobrenomes certificando-me que eram os meus e dirigi-me à sala indicada pela atendente. Sentei de frente com uma senhora de frente para uma tela de computador que arrebatava a prisão de seus olhos. Tive dúvida se aquela senhora já era parte da máquina ou se aquela máquina era a extensão do corpo daquela senhora. Compenetrada, me fez uma série de perguntas: nome, endereço, telefone, CPF, título de eleitor, data de nascimento, renda… “Renda?”, perguntei, ela pela primeira vez olhou-me no rosto e repetiu “Renda! Sua renda mensal. Com quanto dinheiro você passa o mês?”. Há tanto tempo desempregado, me virando a custas de dádivas e favores alheios, eu realmente não possuía Renda Mensal. Aliás era justamente por não possuir a tal Renda Mensal que ali estava eu, lutando contra todo o desconforto de uma reunião de Pobres Declarados, de Falidos Assumidos, expliquei isso a ela.

Pasma, olhos arregalados nos meus, ela disse com voz áspera: “Mas todos tem uma renda.Eu preciso que você me diga uma Renda Mensal, a sua Renda Mensal para que eu escreva aqui nesse espaço e possa então dar continuidade no seu processo de solicitação do Certificado de Pobreza”, ela me explicava apontando com o dedo uma lacuna em branco na tela do computador. Teria então que inventar uma renda, pensei, perguntei. Com essa a senhorinha virou uma fera, disse que eu não colocasse palavras em sua boca, falou que eu estava atrapalhando o andamento da Democracia e atrasando uma fila enorme de pobres na esperança do Certificado. Eu já não tinha o que dizer, tentava em vão fazer alguns cálculos de cabeça, mas a velha já tinha perdido a paciência, chamava o próximo da fila e ignorava-me.

Levantei-me e saí do Fórum sem conseguir o Certificado de Pobreza, fato esse que encarei como um Bom Presságio, um indício de que a sorte prometida está prestes a chegar, e quando pintar a oportunidade não desperdiçarei. Continuo pobre mas um pobre que aguarda ser rico, empresário, milionário. Um rico que pode gastar com o que quiser. Serei dono de uma riqueza que poderá comprar a identidade que eu quiser.     

Dudu Pererê – Poeta