“Não dá mais, Fran, a gente precisa ir para casa fazer quarentena”, diz Marli à patroa, explicando que a mãe de 75 anos está no grupo de risco da pandemia.
“Temos que cuidar das nossas famílias”, emenda Dinah, a outra doméstica da casa, mãe de dois adolescentes.
A patroa avisa à dupla de empregadas que elas terão salários reduzidos à metade. Fran Clemente, uma famosa influenciadora digital, recorre então à terceira funcionária. “E você, Ju? Fica comigo, faz a quarentena aqui em casa. Melhor do que ficar na favela.”
A serviçal impõe uma condição: “O dinheiro que cortou delas paga pra mim”. A patroa reclama, mas Ju não se intimida: “É pegar ou largar. Eu não vou fazer o trabalho delas?”
A história termina com a dona da casa fazendo ioga, enquanto na área de serviço a doméstica combina pelo WhatsApp de repassar o valor que vai receber a mais para as colegas em quarentena.
“É nós por nós”, diz Ju, ao final da troca de mensagens com Dinah e Marli, gratas pela solidariedade na crise.
As cenas e os diálogos acima são da série em quadrinhos “A Confinada”, de autoria do ilustrador e roteirista Leandro Assis, e da escritora e ativista Triscila Oliveira.
Publicadas no Instagram, as tirinhas viralizaram ao retratar a relação entre uma blogueira e sua empregada doméstica durante o distanciamento social imposto pela crise sanitária do coronavírus.
“A ideia é mostrar a luta de classe no contexto da pandemia”, explica Leandro.
A dupla retrata os contrastes do confinamento de uma socialite entre as quatro paredes de um apartamento de mil metros quadrados, cenário de posts sem-fim nas redes sociais, e da doméstica mergulhada em seus afazeres e limitada ao quartinho na área de serviço.
As situações ficcionais da série, que está no sexto episódio, encontram paralelo em diversos arranjos feitos Brasil afora.
Retratos de um país que tem nas dependências de empregada e nos elevadores de serviço símbolos maiores de uma persistente herança escravocrata.
“Ainda existe muito forte essa relação Casa-grande & Senzala, de supremacia da elite brasileira”, afirma Triscila, 35, referindo-se ao clássico da sociologia verde-amarela escrito por Gilberto Freyre.
Definindo-se como “cyberativista”, ela tem como bandeiras o combate ao racismo e à desigualdade social no Brasil.
“Na série, estamos mostrando o privilégio que é poder se isolar para se proteger do coronavírus, enquanto as domésticas estão longe de casa ou arriscando a vida para ir trabalhar”, explica Triscila.
Filha de uma empregada doméstica aposentada, ela trabalhou em casa de família dos 12 aos 20 anos. Concluiu o ensino médio e teve como primeiro emprego formal atendente de telemarketing.
Deixou para trás o destino traçado para as mulheres da família. Triscila tem sete tias, todas domésticas, algumas ainda na labuta mesmo após se aposentarem.
Esse exército familiar de avental serve de inspiração para “A Confinada”. Razão de os diálogos da patroa Fran com a empregada Ju serem tão realistas e ganharem ressonância nas redes sociais dos criadores da série.
A famosa da ficção logo foi comparada a Gabriela Pugliese, blogueira que sofreu um abalo sísmico de imagem após promover um jantar em casa durante a quarentena.
Postou imagens da farra, sofreu uma avalanche de críticas, perdeu clientes e tirou do ar seu perfil de 4 milhões de seguidores no Instagram.
A blogueira de “A Confinada” personifica também a alienação de Barbara Brunca uma das convidadas de Pugliese.
“O que eu fiz de errado ao ir a um jantar com cinco amigos?”, questionou a influenciadora em postagem endereçada aos seus 377 mil seguidores.
“Essa trupe de influenciadoras ‘maras’ são um desserviço para a população”, escreveu um fã de “A Confinada”. Triscila postou em seu perfil no Instagram, @afemme1, que tem 150 mil seguidores, o chilique de Brunca após a repercussão negativa do encontro social em plena pandemia.
“As blogueiras vivem de fabricar o nada. São famosas por ostentar uma vida fútil. Ganham fortunas. Enquanto temos tantas outras produzindo conteúdos maravilhosos de fato e que não têm dinheiro para pagar o aluguel”, lamenta a coautora da série.
Triscila é o contraponto às “blogueiras-ostentação”. Em 6 de maio, ela chamava a atenção para duas notícias que ajudam a entender o Brasil e seus paradoxos. “Belém inclui domésticas entre os serviços essenciais durante lockdown” e “Ricos de Belém escapam em UTI aérea de colapso nos hospitais da cidade”.
A cyberativista conta ter ouvido de parentes com registro de doméstica na carteira ou em inúmeros depoimentos nas redes sociais o argumento de que manter a empregada em casa durante o confinamento é um ganha-ganha.
O raciocínio é: a funcionária mantém o emprego, os patrões continuam contando o serviço dela, a empregada está protegida e eles também, na medida que ela evita se infectar no trajeto da casa para o trabalho.
“Dão essa maquiagem humanitária, de que elas estão melhores com os patrões do que na favela. Só que não cola esse papo de que a empregada é da família. Elas não estão no testamento nem podem botar o pé na piscina”, critica.
A coautora de “A Confinada” faz referência ao filme “Que Horas Ela Volta”, de Anna Muylaert, protagonizado por Regina Casé.
Para Triscila, as trabalhadoras domésticas são a categoria que mais sofre em situações de crise. “Basta ver como estão sendo tratadas nesta pandemia, com muitas forçadas a continuar trabalhando sob o risco de serem dispensadas.”
Segundo Janaína Mariano de Souza, presidente do Sindicato das Empregadas e Trabalhadores Domésticos da Grande SP, houve um aumentou em 70% a procura pelo serviço de tira-dúvidas da entidade na pandemia.
Logo que saiu a MP 936, que permitia a suspensão do contrato de trabalho e a redução de salário e de jornada, o sindicato chegou a receber em um único dia 170 acordos para analisar. “Mais de 80% eram de suspensão, mas temos visto muitas dispensas também.”
A entidade presta assistência para aquelas que estão trabalhando em confinamento ou indo e voltando todos os dias para casa, com risco de ser infectada no caminho.
“Quem está confinada na casa do patrão tem que ganhar horas extras e adicional noturno. O número de ações trabalhistas pós-pandemia vai ser grande”, prevê Janaína. “Temos recomendado que elas guardem as mensagem de WhatsApp e outros registros que possam servir de prova.”
Muitos patrões também procuram se informar no sindicato, especialmente aqueles preocupados com a segurança de suas funcionárias.
“Muitos estão providenciando Uber e táxi para levar as empregadas de casa para o trabalho”, constata Janaína. A presidente destaca a importância do fornecimento de máscaras, luvas e álcool em gel às domésticas.
Lurdes, 38, fez um acordo com os patrões para trabalhar apenas dois dias da semana e manteve o salário integral, de R$ 1.100.
“Vou de transporte público, com ônibus lotado, muita gente sem máscara e encostando um no outro no trajeto de uma hora”, relata ela, que pede que o sobrenome não seja revelado.
Ela usa máscara e o álcool em gel dados pela patroa, mas não se sente segura.
“Vivo com medo de adoecer. Se eu cair doente vai ser difícil. Os hospitais estão muito cheios e tenho pânico de infectar minha mãe, que é diabética e tem 75 anos.”
Lurdes tem amigas que estão confinadas com os patrões, mas essa não era uma opção para quem tem que cuidar da família como ela. “Só aceita ficar direto quem tem medo de perder o emprego.”
(Publicado originalmente na Folha de S. Paulo por Eliane Trindade)