Meus avós foram uns dos primeiros habitantes a morarem no morro. Minha avó dizia que quando eles chegaram do interior de Minas tudo era muito diferente. As pessoas, segundo ela, eram muito mais educadas e sempre que se encontravam tinham o costume de se cumprimentarem.

 

            Sem lugar para trabalharem no inicio dos anos 40, eles seguiram o conselho de uns amigos que já tinham vindo para cá e ocuparam uma área, que mais tarde se transformou no Morro dos Novos Amores.

 

            Dona Angélica nunca soube me explicar o porquê deste nome tão sugestivo. O que eu sei, e é o que dizem, é que na época em que meus avôs vieram para o Rio, as pessoas ricas da cidade aproveitavam a calma e a vista do morro para namorarem as escondidas dos seus pais.

 

            Não sei se é boato, mas o que também rola é que o filho de um grande empresário dos anos 40 apaixonou-se por uma menina pobre e sempre que podiam se encontravam no morro. Como ainda não existiam namoros entre ricos e pobres, a menina nunca foi apresentada para os pais do riquinho. Dizem que eles eram tão apaixonados que acabaram se matando.

 

            Os corpos dos dois foram encontrados dentro do carro do playboy com características de envenenamento. A partir deste dia as pessoas passaram a comentar que foi um tal de nego rico a namorar com nega pobre e, assim, a surgirem diversos novos amores que não eram acostumados a serem vistos andando de mãos dadas pela cidade.

 

            Sinceramente, não sei se é verdade. Aliás, tenho pra mim que isso tudo não passa de um puta kaô. Se eu estivesse na condição do riquinho e realmente fosse apaixonada pela mina, pegava os milhões do meu pai e fugiria com ela para uma praia no meio do nada.

 

            Minha avó sabia mais ou menos desta lenda, mas nunca quis falar muito sobre esse acontecido.

 

            O Morro dos Novos Amores é a maior favela do bairro de Santa Tereza. Acho que por lá devem morar umas cem mil pessoas. Meu avô, que quase não falava, dizia que quando eles chegaram no morro o que mais se via era mato e os cavalos que pastavam pelo local.

 

            Por coincidência, os avós do Lico também foram uns dos primeiros moradores da favela. Seu Luizão foi muito amigo do falecido avô do Lico.  Minha avó falava que eles eram inseparáveis. Viviam capinando a área para ajudarem as outras pessoas que iam ocupando e construindo seus barracos no local. Também gostavam de sair para beber no bar que foi montado na entrada do morro. Parece que os dois viviam para o trabalho e para a cerveja.

 

            Quando o avô do Lico morreu de uma doença que eu não sei qual foi, seu Luizão passou a ficar mais em casa e a cuidar da minha avó. Assim, aos poucos foi ficando cada vez mais em casa até que raramente passou a sair do barraco. Ia do trabalho para casa sem nunca mais endireitar-se para o bar do Uga.

 

            Dona Angélica sempre reclamou do comportamento das pessoas. Para ela era difícil aceitar que as pessoas passassem por ela e não dessem um bom dia ou boa noite nas ruas. Outra coisa que ela sempre reclamava era das armas e da música alta no morro. Não entendia como crianças podiam andar segurando armas maiores do que elas e como o som nos bailes só parava de tocar de manhã.

 

            Os Amores era como qualquer outra favela. Tinha o dono do morro, o bom de bola, o bêbado comédia, a mãe de santo, a mais gostosa e o coroa. O coroa era o morador mais antigo do morro, o primeiro a construir o barraco na favela. Era respeitado por ser o descobridor.

 

            Minha avó dizia que o coroa sempre foi um cara sozinho. Nunca casou ou constituiu uma família, mas era um senhor muito educado e querido por todos.

 

            Devo ter falado com o coroa pouquíssimas vezes na vida, mas uma delas foi quando a bola que eu chutei entrou dentro da casa dele. Graças ao meu bom Deus, não quebrou nada lá dentro, mas pude ver que o coroa era um sujeito muito religioso. A casa dele tinha varias imagens de santos e santas. E quando fui embora ele ainda falou para eu ir com a Virgem Maria.

 

            A Maria era a mais gostosa. Não era a mais gostosa do morro, era a mais gostosa de todas as outras que eu tinha conhecimento.  Ela andava com umas calças justinhas sempre com decotes bem definidos nos peitos. Era incrível. O pai dela, seu Jair, era casca grossa. Não deixava a mina fazer nada, mas também se eu tivesse uma filha como aquela, não ia deixar nem sair de casa.

 

            Teve um mês em que choveu todos os dias na cidade, o morro ficou parecendo uma cachoeira. Minha mãe ficou desesperada porque não conseguia botar para secar as roupas das pessoas para as quais ela prestava alguns serviços.

 

            A solução foi estender as roupas na parte de trás da geladeira para secá-las com o motor que ficava encostado na parede. Eram tantas as roupas, que minha mãe me pediu para levar algumas para a casa da dona Nelma, mãe de Maria e esposa de seu Jair.

 

Elas eram meio que sócias na lavagem de roupas. Assim que cheguei na casa da dona Nelma, a filha dela abriu a porta toda cheirosinha de banho tomado.  Fiquei paradão diante de tanta beleza. Aos poucos fui me recompondo e falando que minha mãe havia me pedido para entregar umas roupas para a mãe dela.

 

            A chuva apertou de tal modo que não deu para sair debaixo da laje do barraco deles. Dona Nelma então me convidou para entrar e aguardar a chuva passar. Quando estava entrando ouvi uns barulhos de tiros e em seguida vi o Portuga, dono do morro e primo do Lico, passando em frente à porta da casa com uma garrafa de cerveja na mão e rindo à toa.

 

            Dentro da casa do seu Jair, que era também tio do Portuga, fui saber que naquele dia era aniversário do dono do morro.

 

            A noite toda foi de muita chuva, fogos e tiros. Tive a sorte de dormir na casa deles naquela noite para poder ficar mais perto da Maria. Não rolou nada, e também nem poderia, a mina já estava saindo com um cara que nem no morro morava. Era mais um dos tais novos amores que as pessoas diziam.

Por Carlos Bruce Batista