Como nos é impressionante o empenho em vida de certas figuras! A história se encarrega, através da sabedoria do tempo, de reluzir naturalmente modelos extraordinários que em períodos como o nosso, de obscuridade intelectual e moral, são capazes de nos despertar e nos fazer sentir mais artistas, mais justos e mais nobres, como antes o foram. Apesar do encobrimento sistemático do legado, de forma a impedir que inspirem, são inevitáveis as forças de transformação, que a tudo movem: o humano e a sociedade. Que sempre há de mover!
Luíz Gonzaga Pinto da Gama é um desses personagens fundamentais que racharam as estruturas: de escravizado a homem livre, negro e pobre contra todo um sistema, de iletrado a poeta a libertador.
Em meados do ano de 1882, segundo registros, o escritor Raul Pompeia descreve com absoluta precisão um cortejo fúnebre que, definitivamente, paralisou São Paulo. Desde o corpo ser preparado e aguardado por vigília. Desde o molde de gesso no rosto por um escultor até o “amigo de todos” ser carregado nos braços para o outro lado da cidade. Movendo todas as classes, dizem. “Diante da casa os homens choravam como uns covardes, e as senhoras soluçavam”.
Seguia a multidão. Seguiam disputando a honra de carregar o caixão. Atrás, uma grande quantidade de carruagens e, entre elas, o coche fúnebre vazio. O ilustre baiano Antônio Loureiro de Souza comenta: “O seu enterro foi um espetáculo inédito: foi o maior de que há notícia naqueles tempos. A multidão que acompanhou o féretro, com todo silêncio e admiração, era obrigada a parar pelos numerosos discursos.”
Luíz Gama, aos cinquenta e dois anos, concorrido por tantos em seu fim, havia libertado mais de quinhentos cativos. Herdeiro de ideais revolucionários como da mãe. Africana livre de Costa Mina, Golfo da Guiné, Luiza Mahin foi envolvida nas revoltas dos Malês e de Sabinada. Vendido aos dez pelo pai, fidalgo português, para saldar dívidas. Nunca negociado por ser baiano, pois todo baiano tinha a fama de ser rebelde e insubmisso. Espremido num navio negreiro até o Rio, e de Santos a Campinas, este último a pé. Analfabeto até os dezessete, fugiu com dezoito para São Paulo. Podemos dizer que se libertou, já que sua genitora nunca fora escrava. Insubordinado sempre: trinta e nove dias preso e expulso da Força Pública. Além de soldado, foi copista, secretário, tipógrafo, jornalista, advogado, escritor e abolicionista.
Durante um júri, seu gênio radical e maravilhoso proferiu uma frase que se tornou célebre: “O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa”. Isso provocou tal reação ante os presentes, tal confusão, que foi o juiz obrigado a suspender a sessão.
“…não sei que grandeza admirava naquele advogado, a receber constantemente em casa um mundo de gente faminta de liberdade, uns escravos humildes, esfarrapados, implorando libertação, como quem pede esmola; outros mostrando as mãos inflamadas e sangrentas das pancadas… E Luíz Gama fazia tudo: libertava, consolava, dava conselhos, demandava, sacrificava-se, lutava, exauria-se no próprio ardor, como uma candeia iluminando à custa da própria vida as trevas do desespero daquele povo de infelizes, sem auferir uma sobra de lucro…”, por Raul Pompeia.
Contemporâneo de Castro Alves, o abolicionista de pseudônimos Afro, Getúlio e Barrabaz, nos deixou graves, apaixonadas e excepcionais impressões sobre a beleza das mulheres negras no estilo do Romantismo do século XIX. Provavelmente, o primeiro a fazê-lo: “Meus amores são lindos, cor da noite / Recamada de estrelas rutilantes / tão formosa creoula, ou Tétis negra / Tem os olhos dois astros cintilantes…”. Não escondeu a origem, exaltando sempre sua negritude, de que o exemplo são os versos publicados na coletânea intitulada “Primeiras Trovas Burlescas de Getúlio”, de 1859.
Luíz Gama, o poeta libertador, foi, talvez, poupado em sua luta em ver. Somente seis anos após sua morte se deu aquela “abolição da escravidão”, com toda sua narrativa vil e mentirosa, circundada por interesses escusos entre a sanção da lei Áurea – a princesa -, sua Corte e pressões internacionais, de mercado e até propostas eugenistas da população brasileira.
Talvez, na delicadeza que o destino nos deixou, tenhamos sempre a figura emancipatória no auge da guerra justa, no despertar e na busca do ‘brasileiro novo’, contra evidentemente uma elite mestiça, que se considera europeia. Elite que não gosta do Brasil e odeia o brasileiro. Que, em si, é o sistema de poder que exclui e que coloniza – talvez a última doentia barreira, de que ainda padece nossa sociedade.
Deixando-nos, sobretudo, na morte, a imortalidade.