Ontem no fim da tarde depois de uma intensa troca de tiros entre traficantes na Vila dos Pinheiros e Vila do João, na Maré, fui junto com meu amigo e também militante das causas sociais Timo, panfletar na entrada da Vila do João, também na Maré, divulgando sobre o Ato Público que várias pessoas, organizações e instituições de dentro e fora da Maré estão organizando para o próximo domingo, dia 20 de setembro a partir dás 08:00h, contra esse estado de violência que nós moradores e moradoras estamos enfrentando e, enfatizar que a vida deve ser valorizada, pois entendemos ser ela [a vida] nossa maior riqueza. O ato terá início na Vila do João e passará por outras comunidades do bairro. Num certo momento da panfletagem um amigo passou e parou para me cumprimentar. O convidei para ajudar na divulgação do ato, mas ele rejeitou de pronto. Quando saia, voltou-se pra mim e falou no meu ouvido: “vocês são malucos, isso não vai mudar nada”. Fiquei a refletir sobre esse sentimento imobilista, fatalista que teima em ser mais forte do que o sentimento de luta pela mudança de rumo, por dias melhores, pela valorização das nossas vidas.

            Não somos ingênuos e/ou românticos a ponto de achar que não existe um perigo eminente. Perigo esse que pode ser letal. Mas também me pergunto se estamos livres desse perigo quando nos “acomodamos” e deixamos nas mãos de Deus e das autoridades, quase sempre truculentas e incompetentes, a responsabilidade por garantir nossa segurança e tranqüilidade. Ou ainda mais grave: esperar de outros grupos armados uma consciência social que só existe na cabeça de quem não sabe mais qual papel tem cada um nessa disputa violenta por controle do território ou na ficção das telas de cinema. Haja vista o caso da senhora que ontem ficou, junto com seus netos, mais de três horas como refém de traficantes na Vila dos Pinheiros. Ela chegou a perguntar ao policial se estava presa. Isso demonstra que existe uma evidente inversão de papeis nas Comunidades. Ela, com a pergunta nos faz entender que quando estava presa, refém dos traficantes estaria segura, mas quando é colocada aos cuidados dos policiais se sente presa, acuada.

            Outra Maré é possível! Apesar de meu romantismo aflorado, acredito nas instituições públicas. Acredito na mudança de mentalidade, na mudança de proposta. Principalmente, na mudança na política de segurança. Uma política de segurança que não criminalize os moradores das comunidades populares; que nos respeite enquanto coletivos corporificado de direitos; onde a valorização da vida seja seu maior objetivo; que não faça distinção territorial no momento de suas operações; e que nos respeito enquanto cidadão na plenitude de nossos direitos e deveres. É por isso que devemos todas e todos estar junto com os demais companheiras e companheiros no Ato Público da Maré.

            Não só outra Maré é possível como também outra cidade, outro país. Podemos realizar projetos locais que desencadeem ações globais. Mas para isso é necessário pensar junto, construir junto e caminhar junto. Nossa ação no próximo domingo não pode ser intimidada pela ação violenta de grupos armados, mesmo sabendo que esses grupos têm a seu favor o argumento da força criminosa. Acredito, de verdade, que nosso argumento pela continuidade da vida e a esperança em dias melhores tem mais força e mais adeptos. É isso que vamos oferecer no domingo: a possibilidade de juntos construirmos uma comunidade melhor, um bairro melhor. Longe dos sons de tiros de guerra, dos corpos espalhados nas calçadas, de jovens reféns das drogas, da vida de nossa juventude interrompida na sua plenitude. Daremos o primeiro passo na direção da mobilização popular, da luta organizada por políticas públicas de qualidade, da democratização do nosso ir e vir, do direito de criar nossos filhos da melhor forma possível e no melhor ambiente possível. Queremos retomar o espaço das comunidades como espaço da alegria, da solidariedade, do si dar em toda a sua diversidade e riqueza cultural e social. Ato Público na Maré: outra Maré é possível: pela valorização da vida e o fim da violência! Eu acredito! E você?

 

Francisco Marcelo – morador da Vila do João