Pela primeira vez, em 30 anos, o Bando de Teatro Olodum, Salvador-Ba, poderá comemorar seu aniversário fora dos palcos. A companhia vinha construindo um ano promissor ao realizar uma série de apresentações comemorativas, com espetáculos de sucesso, documentário sobre o grupo, festival de arte negra, entre outras ações. A ideia era fechar as três décadas em outubro com chave de ouro.
Desde o último mês de março, porém, com o fechamento das cortinas devido à pandemia de Covid-19, as celebrações cessaram e o futuro é incerto.
“Esse era um momento muito especial. Começamos bem, começamos com aberturas e com filme, mas recuamos por conta do coronavírus”, explica Leno Sacramento, um dos atores do bando .
Com as apresentações suspensas há mais de dois meses, os 24 profissionais do grupo, que incluem artistas e técnicos, vivem o drama de terem perdido a renda dos palcos e de não saberem quando voltarão a trabalhar.
Entre eles, cerca de sete aguardam o auxílio do governo federal destinado a trabalhadores informais, mas que teve a ampliação a artistas vetada pelo presidente Jair Bolsonaro.
Desde a sua criação, o bando tem como ‘berço’ e local constante de apresentações o histórico teatro Vila Velha, localizado na região do Campo Grande. Sem a receita das bilheterias, oficinas e quitutes do café local, o espaço, com mais de meio século de existência tem lutado para arcar com as despesas mensais, que envolvem infraestrutura e corpo de funcionários.
“Vamos diminuir o ar condicionado, mas temos que fazê-lo funcionar ao menos uma vez por semana; vamos diminuir o consumo de água, telefone, material de limpeza, mas ainda serão custos; e ainda temos os salários de parte dos funcionários não cobertos pelo apoio do estado que não vamos demitir, mas dar férias”, afirma o diretor artístico, Márcio Meirelles, em carta aberta publicada nas redes sociais.
A parceria com o Governo do Estado da Bahia, em vigor desde antes da pandemia, cobre parcialmente os custos de funcionamento, mas segundo Meirelles, em torno de R$20 mil precisam ser levantados a cada mês para a plena manutenção do local.
A alternativa tem sido reforçar uma campanha de financiamento coletivo nas redes sociais e utilizar o prestígio do teatro, que ajudou a revelar estrelas como Gilberto Gil e Caetano Veloso, para reunir artistas amigos em vídeos de apoio.
No bairro de Pituaçu, o circo Picolino é outro espaço consagrado da capital baiana atingido pela crise. O circo mal tinha se recuperado do falecimento do seu fundador, Anselmo Serrat, em março, quando viu paralisadas todas as atividades – além das verbas de um edital da prefeitura.
Para piorar, as fortes chuvas de maio rasgaram uma das lonas do espaço, expondo parte da estrutura interna.
O evento mobilizou uma rede de solidariedade na internet. Até o momento, o Picolino improvisa uma proteção contra as chuvas enquanto uma nova lona, doada por um circo do Rio de Janeiro, não chega.
Já a equipe de 13 pessoas, composta por três professores e nove técnicos/produtores, busca outras formas de se sustentar sem o trabalho no circo, atualmente, negociam com a prefeitura a liberação de nova parcela do edital.
Perdas e incertezas
Segundo a Fundação Getúlio Vargas, o setor da cultura deve perder R$ 46,5 bilhões por conta da crise do coronavírus, um recolhimento de 24%. Na prática, os valores expressam a violenta redução nas condições de vida de figurinistas, técnicos de som, iluminadores, maquiadores, músicos, bailarinos, agentes culturais, atores, arte-educadores, e muitas outras categorias.
Uma massa de 5,2 milhões de pessoas, de acordo com dados do IBGE de 2018, e que, mais ou menos, depende de aglomerações e produções coletivas para realizar suas funções.
Pesa ainda o fato de boa parte desses trabalhadores estarem na informalidade, ocupando posições altamente vulneráveis e instáveis – 45,2% dos profissionais da cultura no Brasil são informais, segundo mesma pesquisa do IBGE.
“Estamos desolados, tenho receio de alguns nem suportarem, é sério. Sabe o que é tirar de alguém seu trabalho, sua correria, a sua fonte de orgulho, de dignidade humana? Essa pergunta é retórica, eu sei que não sabe, só o artista de rua sabe o que ele está passando.”
A indignação é de Sérgio Reis, coordenador do Movimento de Teatro de Rua da Bahia. A entidade agrega cerca de 100 grupos artísticos atuantes no estado. “Estamos nos ligando constantemente, propondo saídas, quando ficamos o dia inteiro sem se falar, parece que é um século de esquecimento, a família é importante nesta hora, ou o arranjo familiar, não temos amparo psicológico, nunca tivemos, por que sempre doamos”, conta.
A produtora cultural Érika Araújo viu uma avalanche de prejuízos à sua frente quando todos os espetáculos da Gmas Produções foram cancelados: passagens aéreas das equipes, hospedagens, divulgação em rádios, tevês, outdoors, milhares de panfletos impressos. Tudo pago em vão. Agora, sem perspectivas de retorno, ela acumula débitos. “As contas continuam chegando, e não temos previsão de começar a produzir”, conta.
Com a ajuda de colegas, Érika realizou uma campanha de doações de cestas básicas para os funcionários do Teatro Jorge Amado, na Pituba. A casa já recebeu diversos espetáculos produzidos pela Gmas, e hoje, encara os rendimentos zerados sem nenhum apoio privado ou público. Da mesma forma que em outros espaços, nenhum dos funcionários foi demitido – mas estão em casa sem receber salários.
“[Estamos] esperando ver se há uma possibilidade de subsídio da esfera pública com os espaços. A gente está contando com esses apoios para poder pagar todos os nossos funcionários. A gente não demitiu ninguém porque não tem nem condições nesse momento”, explica Nell Araújo, diretor do Jorge Amado.
Desamparo
Em geral, os profissionais compreendem a importância das medidas de distanciamento social, mas cobram do governo apoio durante a crise.
“Os governantes têm ouvido, pelo menos os municipais e estaduais, mas não têm feito nada. Do governo federal, a gente não pode esperar nada”, indaga Marconi Arap, ator e educador teatral.
Junto à esposa, Luciana Comin, também atriz e educadora, ele administra um grupo de teatro e de formação de atores voltado à infância e juventude em Salvador. O negócio só não parou completamente desde o início da quarentena por conta de alguns poucos alunos que estão tendo aulas por videoconferência. “Mas a gente está completamente ao ‘deus-dará’. A gente está completamente à própria sorte”, afirma Marconi.
Leno Sacramento, do Bando de Teatro Olodum, pontua, no entanto, que a crise pegou de surpresa tanto trabalhadores da cultura quantos gestores públicos, e que, por isso, é necessário tempo de adequação.
Demonstrando iniciativa, um grupo de artistas e produtores soteropolitanos enviou um “Plano de Crise para as Artes Cênicas da Bahia” aos órgãos de cultura municipais e estaduais logo em março. Segundo os elaboradores, o documento foi assinado por mais de cem artistas. Mais de dois meses depois, além de breves reuniões, o grupo conseguiu das entidades a promessa de que as propostas estão “em análise”.
“Parece que a Prefeitura de Salvador e o Governo da Bahia, estão esperando a curva do desespero dos profissionais das artes atingir seu pico!”.
Algumas das proposições do documento são: isenção de taxas e contas públicas até o fim do ano para equipamentos culturais, apoio financeiro para grupos artísticos, apoio financeiro para pagamento de aluguel e manutenção dos espaços culturais, inclusão dos profissionais das artes cênicas nos programas de alimentação do governo.
A Prefeitura de Salvador e a Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb) deram um aceno ao setor recentemente. O primeiro anunciou a distribuição de 2.300 cestas básicas aos trabalhadores da cultura mediante cadastro em plataforma da entidade. Já o segundo, lançou um edital para premiar propostas artísticas realizadas em ambientes virtuais, com recompensas no valor de R$2.500.
Em Brasília, na esteira das críticas à apatia da ex-secretária especial da cultura, Regina Duarte, corre a proposta da Lei de Emergência Cultural. A PL (Projeto de Lei) prevê auxílios emergenciais ao setor enquanto durar o Estado de Emergência em Saúde Pública no país. O documento também proíbe o corte de água, energia elétrica ou Internet de empresas do setor cultural.
Segundo o projeto, R$3,6 bilhões da União seriam destinados a estados e municípios.
No início de maio, 26 Secretarias Estaduais de Cultura, incluindo a Secult-ba (Secretaria de Cultura do Estado da Bahia), assinaram uma carta endereçada ao Congresso que pressiona pela votação da PL. A medida foi aprovada na Câmara dos Deputados na terça-feira, 26 de maio, e agora segue para o Senado.
Adaptação digital
Enquanto o amparo do poder público não vem, artistas e espaços culturais tentam se adaptar à realidade do distanciamento social e manter a chama da arte acesa.
O Bando de Teatro Olodum produziu algumas lives nas redes sociais para se aproximar do público. O Vila Velha lançou oficinas experimentais por meio de videoconferências. Uma página no Facebook chamada Na Quarentena Tem Teatro atraiu mais de mil seguidores ao exibir peças gravadas de diversos grupos ao redor do país.
Ainda não se sabe, porém, se a investida no mundo virtual renderá alternativas financeiras viáveis aos artistas. A página Na Quarentena Tem Teatro, por exemplo, afirma não conseguir monetizar suas visualizações por não concentrar os vídeos em um canal próprio do YouTube – eles apenas disponibilizam os links que as produções enviam.
Outro desafio é adequar a experiência “viva” dos espetáculos e montagens à “frieza” e rigidez das encenações exibidas em telas de celulares e computadores.
Por último, ainda paira sobre os profissionais das artes cênicas a apreensão sobre como será o futuro da categoria, num mundo certamente mais receoso de aglomerações e ambientes fechados.
“Vai ser um caos pós-caos, para os artistas, para o teatro. Ainda vamos ter medo de estarmos sentados ao lado de outras pessoas quando tudo isso acabar”, prevê Leno Sacramento.