Movimento Policiais Antifascismo - Divulgação

Movimento pede desmilitarização das forças de segurança pública e relata aumento de perseguições a integrantes.

As investidas do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em torno do afrouxamento de mecanismos de identificação e rastreamento de armas, assim como seu desejo de ‘armar a população’, exposto em vídeo de reunião ministerial realizada em 22 de abril, demonstram que o mandatário não está a favor de policiais e trabalhadores da segurança pública.

É o que afirma Hildebrando Saraiva, Inspetor da Polícia Civil do Rio de Janeiro e membro do movimento Policiais Antifascismo. Segundo ele, ao incitar populações armadas contra prefeitos e governadores, o presidente vulnerabiliza a classe policial cujo trabalho envolve garantir a ordem pública e fazer cumprir a lei. “Quem está na rua são os policiais, não Bolsonaro”, pontua.

Saraiva representa uma ala progressista dentro das polícias brasileiras, unida desde 2017 em torno da bandeira do antifascismo e presente, hoje, em pelos menos 15 estados. O grupo conta com policiais civis, militares estaduais e federais, guardas municipais, bombeiros, agentes penitenciários, entre outros profissionais.

Autodeclarado suprapartidário, o movimento incorpora pautas caras à esquerda, como a oposição à ideia de ‘guerra às drogas’, ao encarceramento em massa e à proibição do comércio de substâncias consideradas ilícitas.

A desmilitarização das polícias é outra reivindicação fundamental do grupo. Segundo Saraiva, a lógica militar reduz os policiais a soldados, o que facilita a ‘superexploração’ da categoria, em especial de agentes de patentes mais baixas. Policiais, atualmente, não têm direito a greve, filiação partidária ou sindicalização, vedados pela Constituição.

Em contrapartida, o grupo defende o reconhecimento dos agentes como trabalhadores, com direitos e condições de trabalho plenamente asseguradas.

No último dia 5, um manifesto assinado por mais de 500 policiais do movimento foi divulgado nas redes sociais, alertando para o aumento de perseguições a integrantes e para o ‘avanço do projeto fascista no país’.

De acordo com o texto, intimidações têm sido feitas através de processos administrativos e por representações de parlamentares contra agentes que apoiam publicamente a luta antifascista. O grupo também teria sido classificado como ‘paramilitar’ em uma investigação do Ministério Público do Rio Grande do Norte, na qual membros foram ‘identificados com fotos, endereços e telefones’, alega o documento.

As acusações ocorrem na esteira das falas de Bolsonaro, que classificou como ‘terroristas’ membros de grupos antifascistas. O manifesto ainda propõe a criação de uma ‘Frente Única Antifascista’ formada por sindicatos, artistas, movimentos sociais e outras entidades civis.

Em entrevista exclusiva à ANF, Hildebrando Saraiva aborda a história do movimento, o papel da esquerda no debate sobre segurança pública, a influência de Bolsonaro sobre as forças policiais, entre outras questões. Confira abaixo.

Como surgiu o movimento ‘policiais antifascismo’ e como você passou a integrá-lo? O movimento começa em 2016 e faz sua primeira reunião nacional em 2017. Surge do encontro de dois grupos de policiais. Aqui no Rio de Janeiro, vários fundadores do movimento militavam em uma associação internacional chamada LEAP (Law Enforcement Against Prohibition). Defendíamos a regulamentação da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas. Acreditávamos que o problema do abuso de drogas deveria ser retirado da esfera penal e ser regulado por agências de saúde.

No outro pólo, estava um coletivo de policiais da Bahia chamado Coletivo Sankofa. O grupo foi a fusão de duas militâncias que apontavam a luta antirracista e a superação da lei de drogas como tarefas próprias a todos que defendem o fortalecimento democrático, inclusive policiais.

Com quantos membros o movimento conta hoje? E em quantos estados? O movimento dos policiais antifascismo caminha por um terreno muito difícil.Categorias policiais são conservadoras em todo o mundo. Atualmente, muitos dos nossos integrantes não se sentem confortáveis em serem figuras públicas ou porta-vozes do movimento. Assim, o número exato de integrantes é sempre oscilante. Temos seções organizadas em mais de 15 estados e contamos com policiais militares e civis, bombeiros, policiais federais e rodoviários, guardas municipais, agentes de trânsito, agentes socioeducativos e policiais penais.

Muitos movimentos sociais – no Brasil e nos Estados Unidos, por exemplo – acusam a polícia de ser fascista e racista. Você vê alguma contradição em exercer essa profissão e integrar um grupo antifascismo?Hoje existe essa polêmica sobre o uso do termo antifascista. Argumenta-se que policiais não podem ser antifascistas porque sua ocupação, seu trabalho, seu ofício são necessariamente fascistas. Curiosamente, quem concorda com esse raciocínio são exatamente aqueles policiais que desejam esse tipo de atuação sendo aceita como “legítima” para as polícias: opressão, violência, arbitrariedade. Ou seja, ambos acabam concordando que é impossível mudar a polícia, suas táticas e sua função.

Para nós do movimento, não há contradição entre ser policial e defender os DDHH, as liberdades democráticas, a mudança das instituições policiais por fora do receituário punitivista e encarcerador.

O movimento se opõe às políticas de proibição de drogas, ao hiperencarceramento e à ideia de ‘guerra às drogas’. Como essas pautas refletem nas atividades diárias de policiais antifascismo? Um dos lemas do nosso movimento é “Dentro da ordem, Contra a ordem”. Somos porta-vozes de um modelo alternativo de segurança pública que possa superar esse receituário anacrônico e reacionário.  A guerra às drogas já se mostrou completamente fracassada. Defender a legalização das drogas não significa diminuir a condenação moral do uso ou do abuso de drogas. Mas isso é uma tarefa das igrejas, das famílias, não da polícia. O hiperencarceramento já se mostrou ineficaz e promotor de desigualdades e injustiças. Em nenhum lugar do mundo alcançou-se uma ordem social mais igualitária e democrática através da prisão.

Contra essa agenda é preciso construir outras propostas que sejam factíveis a curto prazo. A pessoas não serão convencida apenas pelo apelo de construção de uma nova sociedade. Temos de oferecer medidas para “amanhã” que sejam capazes de frear o medo, induzir a uma ordem pública plural e inclusiva e apontar caminhos alternativos. 

O que seria uma polícia desmilitarizada?

Esse é um ponto muito importante para nós. Quando falamos que desejamos construir o policial como um trabalhador estamos afirmando que a atividade policial é uma profissão. Tem saberes e técnicas próprias dessa atividade que nada tem a ver com as instituições militares. Policiais são chamados a intervir em inúmeros conflitos que não podem ser tratados como um conflito bélico. Isso nada tem de críticas aos militares, mas ao se aplicar um decalque militar sobre as polícias deixa-se encoberto inúmeras inconsistências e fragilidades que deveriam ser superadas. Você sabia que até hoje as polícias militares são força auxiliar do Exército? A qualquer momento o Exército pode requerer o comando da polícia militar de um Estado.

Entretanto, tenho certeza de que a escolha pelo formato militar nas polícias ostensivas deve-se à superexploração da força de trabalho das classes populares. Policiais praças são oriundos, em sua maioria, das classes populares e são submetidos à condições de trabalho que nenhum outro trabalhador aceitaria. Policiais trabalham com coletes vencidos, com sobrecarga de horários, em condições insalubres e não podem sequer questionar isso coletivamente: são proibidos de fazer greve, de se associar coletivamente, de serem partícipes da cidadania.

Não será possível que policiais sejam garantidores de direito quando eles mesmos têm todos os direitos negados.

Com os protestos antirracistas se espalhando ao redor do mundo na últimas semanas, discussões sobre abusos policiais têm estado em evidência. O momento pode ajudar a emplacar mudanças nas estruturas policiais brasileiras e mundo afora? É preciso explicar pacientemente aos policiais que as propostas autoritárias de Bolsonaro não estão a seu favor, pelo contrário. O presidente afirmou explicitamente que desejava armar a população para se contrapor a prefeitos e governadores. Ora, não serão os prefeitos e governadores que irão às ruas para fazer cumprir a lei. Quem está na rua organizando uma fila, fazendo um bloqueio no trânsito ou fechando uma festa durante a quarentena são os policiais, não Bolsonaro. Liberar o comércio de fuzis e acabar com o rastreamento de munições não são medidas para o fortalecimento da segurança pública, pelo contrário.

As mudanças nas estruturas policiais serão uma iniciativa da sociedade mas deve contemplar e ouvir os policiais, a chave é como transformar os policiais em parceiros da mudança, não em opositores.

O movimento defende que a esquerda deve se apropriar dos debates sobre segurança pública. De que forma isso poderia acontecer? É no campo da segurança pública onde dramaticamente são atualizadas questões como Direitos Humanos, criminalização da pobreza, racismo estrutural – todos temas importantíssimos para as esquerdas. Contraditoriamente, o campo progressista acha pouco importante o debate sobre polícia e segurança pública. Não é surpreendente que entreguemos essa reflexão aos conservadores ou aos reacionários?

Negar a importância do debate não vai fazer com que o tema deixe de ocupar a agenda pública e que seja capaz de fomentar o medo e o pavor da população que, cansada de ser violentada, jogue seus escrúpulos fora, autorizando qualquer tipo de barbárie. É a falta de conhecer alternativas que faz boa parte da população jogar a criança fora, junto com a água do banho.

Acredito que o engajamento nos debates da segurança pública pode nos colocar em uma posição qualitativamente diferente que aponte para a profissionalização das polícias oferecendo dignidade e cobrando compromissos públicos com seus agentes.

Com o governo Bolsonaro, você observa alguma mudança importante no comportamentos das forças policiais – alguma guinada mais à direita ou mais à esquerda? Não foram apenas as forças policiais que deram uma guinada à direita com a eleição de Bolsonaro.  Grande parte da sociedade mostra-se cada vez mais resistente a temas que antes lhe eram caros. Todas as reformas propostas pelo grupo político que está no poder apontam para a concentração de renda, para a perda de direitos. Isso vai elevar em muito os conflitos sociais e ninguém vai sair ganhando. Cabe àqueles que desejam a construção de uma ordem mais inclusiva e justa  encontrar caminhos para construir novos projetos.

Nós do Policiais Antifascismo queremos ser parceiros na construção dessa alternativa para a sociedade brasileira não bastando repetir os versos punk de “polícia para quem precisa de polícia”.