Por Eliane Martins*

Os discos eram de vinil, em várias rotações, pesavam, quebravam e papai ficava zangado com qualquer arranhão. Eu passava as tardes de banho tomado na sala da antiga casa, ouvindo e aprendendo velhas e populares canções: do brega ao chique, cantava de cor qualquer modinha, especialmente o refrão. Da morte de Pixinguinha, da tristeza de papai e dos discos conservados em homenagem àquele que compôs a mais ouvida das melodias do seu tempo, guardo as notas antigas misturadas às tardes raras, iluminadas pela poesia que escorria dos porões.

As músicas vinham do morro e isto a gente aprendia de travessão. O morro, lugar de vagabundo, de malandro negro safado, era assim que se dizia naquele tempo em que as palavras eram curtas e o medo tomava conta das mentes empobrecidas de informação. Enquanto a poesia brotava e obrigava as casas a abrirem suas portas e janelas praquela euforia de vozes e instrumentos, eu ia gravando os rostos, os nomes… e entre um deles estava Jamelão. Nome da arvore da infância, que a gente subia pra ver a paisagem do alto e contemplar a sujeira do chão. Ou balançar no balanço pendurado em um de seus galhos fortes. Ou simplesmente desfrutar de sua sombra e apreciar seu fruto estranho, cuja arrebentação se misturava ao colorido da terra, numa estranha e permanente visão.

Jamelão, um negro do morro, morre aos 95 anos e eu fui dar o último adeus à minha memória, escondida em tantas vozes e cores de antigamente. Pela primeira vez visitei uma favela, comi sardinha frita trazida do alto, cerveja Skol de garrafa a 2,50, música pra todos os gostos, gente passeando na rua, criança fazendo aniversário, bolo no meio da praça, barulho de tiro. Não liga não, é normal, aqui você se acostuma. Fica tranqüila, dizia o meu anfitrião.

A quadra da Mangueira estava repleta de carros do lado de fora, na porta os caminhões e muitos jornalistas de plantão. Gente dando entrevista, a viúva recepcionando os convidados, o neto elegantemente vestido ao lado do caixão. Orgulho de avô, pensei, fica guardado como uma fotografia de recordação. Um velho que de terno azul marinho e blusa rosa por baixo, chapéu de palha com fita rosa, chegou acompanhado da esposa e da filha, olhou o amigo no caixão de depois se sentou em um canto da quadra.

A viúva, com seu mesmo turbante rosa, sua blusa rosa choque e sua calça verde arregalado, recebia os convidados e dava entrevista pra televisão. Seu rosto de traços fortes misturado à uma elegância natural, davam-lhe uma beleza calculada e preenchida com uma vida diferente das demais. As mulheres naquele lugar são iguais às outras, mas bebem muito mais cerveja e andam pelas ruas sozinhas, participam das rodas de discussão. Essa era a fantasia que permeava o meu olhar curioso, cheio de elucubrações.

Meu amigo me perguntava se estava tudo bem e eu achando desnecessária a pergunta, respondia sempre com uma afirmação. Não foi diferente a vida que eu vivi na minha infância, em casas que eram construídas em frente a enormes valões. Não me assusto com as diferenças, com os becos escuros, com modos e aparências distintas. Ser esquisito pode ser o começo da revolução, pensava enquanto lutava contra as esquisitices que me ensinaram durante a vida e que não combinam com a realidade por alguma outra razão.

A razão que explica a desigualdade, o preconceito e a desinformação foi vivida em forma de deboche por Jamelão. Com seu elastiquinho pendurado na mão, reclamando de cachê pra pagar a conta da luz, viveu sua fama de pão duro que tem ojeriza à escravidão. Lamentou repetidas vezes não ser reconhecido e bem pago, como um dos maiores intérpretes da sua época. Sua morte é anunciada hoje em todos os jornais do mundo, enquanto a favela continua fabricando frutas doces, de cor preta e sabor ácido. Eles nascem, crescem e morrem tingindo as calçadas do mundo com suas cores berrantes, suas vozes, suas canções. Nos ensinando que a diferença produz poesia e aproximação, enquanto a desigualdade continua manchando indiscriminadamente o nosso chão.

*Psicanalista