Na sexta-feira fiz uma longa viagem entre Vila Cruzeiro e Antares. Não aquele Cruzeiro famoso da bandeira, resplandecente nos céus do hemisfério sul e tampouco Antares supergigante de Escorpião, também no manto estrelado da noite. Foi apenas um caminho entre a Penha e Santa Cruz, nomes cristãos de bairros periféricos do Rio.
Ao invés do uber fiz o caminho pelos trens da Supervia, concessionária que opera a malha ferroviária por onze municípios da região metropolitana do Rio. Depois de duas horas cheguei em Antares com a missão de entregar 37 livros de filosofia, coleção “Os Pensadores”, num projeto social de lá.
Recebido pelas crianças assim que entrei na favela, vendo meu suor e sede me indicaram sombra e gelo numa birosca. Criançada ligeira e inteligente, fora das bolhas de proteção patológica do asfalto, já sabem se virar e resolver problemas com oito anos. Molecada raiz como nas antigas, nada de nutelagem.
Diferente do imaginário de zona sul, nas favelas do Rio existe acolhimento, simpatia e disposição. Bem rápido achei o projeto do mano escritor, cria da comunidade, com esse sonho insolitamente real de fomentar cidadania pela leitura. Jessé Andarilho é um talento e simpatia, estava lá com a galera da Associação de Moradores me aguardando.
Livros entregues, alegria e abraço. Papo bom, causos e contos sobre túneis desde os tempos da escravidão, convento de freiras, facções e milícias, amigos em comum, filhos e filhas, ação das igrejas, tomei emprestado um livro para voltar em breve. Duas jovens param de moto e levam literatura pra casa e, claro, um stories pro Instagram.
Lembrando dos Pensadores, na herança aristotélica a teologia cristã entendeu os elementos sacramentais como “acidentes”; não são a coisa em si, mas a significam e simbolizam. Pão e vinho são acidentes, predicações místicas do corpo e sangue do Cristo, presença real de Deus na celebração comunitária. Independente das divergências sobre a substância, na missa ou no culto, boa parte dos crentes católicos, evangélicos e que tais, acredita que à volta da mesa eucarística Jesus está ali. É presença de verdade para fortalecer em mais uma semana de trabalho, lutas e gratidão.
À guiza do título, num recorte de Incidente em Antares de Érico Veríssimo, após greves, protestos e indiferença, os mortos se levantam indignados, roubados de um fim decente e causam balbúrdia na cidade. No Acidente em Antares que vi anteontem, um povo alijado da dignidade mínima está caminhando e crescendo, criando dignidade e sorrisos. Predicações e adjetivos para uma nova sociedade, realmente presentes, uma presença real! Numa jornada sacramental que se faz lendo, pensando, refletindo, agindo. Junto com Os Pensadores, lendo e fazendo poesia, conhecendo textos marginais e clássicos, instalando-se na vida com a finalidade de ser gente de verdade.
Na volta pra casa, tinha um compromisso em Caxias às 20h, cheguei 21h30 e perdi. Por causa de um tiroteio em Manguinhos o Ramal Gramacho da Supervia atrasou uma hora e meia. Faltei ao compromisso. Sobre a Supervia e sobre tiroteios falarei mais pra frente.
Bom Domingo, Paz e Bem!