“Em Brasília 20h” com tom empostado avisa o rádio, que muda rápido para uma frequência evangélica comunitária e clandestina; mais um típico anoitecer de rua começa no quase inverno carioca.
E o vírus chinês? O asfalto retorcido por caminhões e ônibus lotados na Brás de Pina, BRT passa cheio de gente e coronavírus, o camelô tenta vender pares de meias e máscaras, tudo a três reais pra matar o estoque e matar a fome da família. A fila no apontador do bicho indo embora ali, o mendigo com cãozinho fiel e sua corote mais fiel chegando lá, esse quase calor quase escaldante e quase sufocante sob máscaras: bem-vindos a mais uma noite de quarentena no suburbano Rio de Janeiro.
E o vírus chinês? Esqueci de comer até essa hora e o cheiro tá bom demais, meu desjejum será yakissoba na calçada. O China brinca e dança com espátulas, shoyu e temperos, na chapa gordos e generosos camarões, um verdadeiro banquete. O cara vai levar meus poucos trocados, importante para ele e sua família – meus vizinhos na Vila Cruzeiro. E dá gosto de vê-lo trabalhando e servindo, amando o que faz…
E o vírus chinês? Certa vez “um amigo mais chegado que irmão” como dizem as Escrituras Sagradas e como quase se diz na vida. Dividimos apartamento em Copacabana numa quase outra vida; contou-me essa história umas vezes. Uma história de amor, serviço e trabalho.
E o vírus chinês? Numa tarde também quase quente ele viajava missionário na China. Muita fome e pouco mandarim viu um restaurantezinho caseiro no vilarejo por onde passava. Entrou esfregando a barriga e gesto de fome com a mão para a boca. Recebido com pouca linguagem e muita cortesia sentou-se à mesa e comeu bem, muito bem, muito. Servido pela senhorinha chinesa e seu neto, olhos puxadinhos e esbugalhados dos convivas – talvez quase nunca tivessem visto de perto um “não-chinês”, a cada comida mais gostosa o cabra ocidental comia com gosto e retribuía cada sorriso dos anfitriões com seu sorriso brasileiro do Paraná de volta. Amor e trabalho!
Cadê o vírus chinês? Mesa farta, barriga cheia e muitas risadas, na hora de pagar a conta foi surpreendido entre mais gestos, caras e bocas: não se tratava de um restaurante! Havia entrado e sido acolhido na casa de uma humilde família chinesa, que vendo um estrangeiro perdido e com fome, sem quases, simplesmente serviu e foi enchendo prato e copo numa festa de Babette oriental a seu modo. Não aceitaram um dólar que fosse pela comunhão e ecumenismo inusitado; serviram, sorriram e amaram.
E o vírus chinês? Nesse inverno carioca já tive Covid-19 e me recupero de pneumonia, haja saúde e criatividade para pagar as contas. Estou sem paciência em escrever hoje acerca da politização do Coronavírus. Gente muito próxima morreu ou perdeu entes queridos, no Complexo da Penha alguns corpos entre lágrimas e indignação, desceram a Rua A onde fica nossa paróquia, também outros se foram becos e vielas abaixo direto ao cemitério. De quem podia estender as mãos, nada de serviço, nada de amor, um péssimo trabalho.
E o vírus chinês? Não vi. O que vejo é uma guerra de narrativas enquanto rios de dinheiro seguem correndo nos desvios, obras e contratos superfaturados entre canalhas. Pesquisa contra pesquisa, artigo contra artigo, especialista contra especialista, dissonâncias científicas e ideológicas formando uma cortina de fumaça onde o povo corre ou morre. Enquanto escrevo, mais de cem mil mortes. Nada, ou quase nada… Nada de serviço, nada de sorriso, nada de amor.
E o vírus chinês? Existe tal doença, fabricada como arma bioquímica num laboratório chinês? Ficções e conspirações à parte, pela maioria dos chineses e chinesas que conheci e convivi, o verdadeiro vírus chinês é basicamente trabalho e sorriso. Desde meu amigo de infância Shi Heng que só ria e trabalhava aos onze anos, passando pela linda modelo e aeromoça Lin Yi que preferiu ser missionária – também sorrisos, amores e serviço – e tantos outros e tantas outras. Ceder à xenofobia é mais um dos males que não precisamos. Até porque sabemos ao olhar no espelho como um povo, seus representantes políticos, poderes econômicos e governos podem ser toscos e sombrios.
Minha prece e melhor desejo hoje é que esse vírus chinês de trabalho, sorriso e amor também te contagie. Ni hao, bom domingo!