Educação sexual, a menina grávida e aborto legal no Brasil

Reprodução

Estamos vivendo tempos sombrios, um cenário nada animador, sem muita expectativa de melhora principalmente para as crianças, que são utilizadas em espaços de propaganda como a futura geração, mas que não são amparadas e nem cuidadas devidamente. Isso não é um comentário pessimista, mas uma dura realidade exposta, e aflige em sua maioria pessoas que tentam contribuir para um mundo melhor. Porém, é importante acreditar que o mundo pode ser melhor, que podemos mudar o mundo, mesmo que as pequenas atitudes pareçam não surtir efeitos rápidos, mas devemos manter a esperança.

Infelizmente a hipocrisia da sociedade é algo estarrecedor, diante de situações que com um pouco de cautela e discernimento é possível tomar atitudes que nos tornem cidadãos e seres humanos melhores. O terrível caso da criança de 10 anos que engravidou do tio, que era abusada desde os seis anos, é um triste exemplo de como o discurso e a prática dos defensores da vida, da crianças, se contradizem, seja no mundo digital ou real. Quantas outras crianças vivem essa situação, quantas meninas se tornaram mulheres tendo que conviver com o medo e as ameças dos seus agressores?

Em meio a grupos da sociedade várias discussões foram levantadas, que perpassam na luta pela descriminalização do aborto, já que nesse caso a criança recebeu autorização da justiça para interromper a gravidez de maneira segura, legal e gratuita, reconhecendo as circunstâncias violentas daquele resultado e os riscos de vida que a menina corria ao levar a gravidez até o final. O amparo da lei brasileira permite o aborto em caso de estupro, risco de vida para a mãe e feto com anencefalia.

O aquecimento da discussão referente a esse tema se deu também depois do episódio em que grupos de religiosos e parlamentares fundamentalistas protestaram nas redes sociais e em frente ao hospital onde o procedimento de interrupção da gravidez foi realizado, posicionando-se contra a determinação judicial e o próprio desejo da criança.

O contexto social que vivia e vive essa menina reforça a hipocrisia externada diariamente. Órfã de mãe, com o pai preso e vivendo sob a guarda dos avós, em condições precárias, vulnerável de várias maneiras, exposta ao risco de perder a infância, diante de uma sociedade que esbraveja que “a criança é o futuro”, e quer obrigar uma criança a ser mãe. Sobre qual base de defesa da vida e das crianças um grupo de pessoas exigem que uma menina de 10 vitima de abusos sexuais mantenha uma gestação?

Outra discussão importante passa pela necessidade de proteger as crianças, como orientá-las, como identificar situações de abuso e violações dos direitos de crianças e adolescentes. Todas essas questões são contempladas pela educação sexual, metodologia que deve ser estruturada e usada para promover conhecimento e esclarecer dúvidas sobre comportamento humano, criação de hábitos saudáveis, sexualidade dentre outros assuntos.

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, os dados referentes a essa problemática são assustadores. O Disque 100 recebe em média 50 denúncias por dia relatando crimes sexuais cometidos contra crianças e adolescentes em todo Brasil. Quatro meninas de até 13 anos são estupradas no país e 6 abortos são realizados por dia em meninas de 10 a 14 anos que foram estupradas.

Há quem se oponha à inserção da educação sexual nas escolas, defendendo que o assunto deve ser tratado em casa, no entanto, lembramos que de acordo com o disque 100 – número nacional que recebe denúncias de violações de direitos humanos, de vários grupos inclusive de crianças e adolescentes – 70% da violência sexual contra crianças ocorre dentro de casa, ou por alguém do seu ciclo de convivência, sendo a escola o principal local de percepção e acolhimento dessas crianças, mantendo-se como canal de comunicação efetivo entre os órgãos competentes.

Dentro de um contexto familiar estruturado com diálogo aberto e acolhimento, algumas atitudes podem ajudar nesse processo de orientação das crianças, como ensinar as crianças a nomear as partes íntimas do seu corpo, alertar cuidadosamente sobre toques, pessoas e situações especificas (banho e consulta médica). Instruir sobre o limite do corpo das outras pessoas, do mesmo jeito que pessoas não podem tocar em suas partes intimas, a criança também não deve aceitar tocar em determinadas partes do corpo de outras pessoas. Ensiná-las a nomear também seus sentimentos e emoções para que consigam identificá-los.

Outra orientação muito importante está relacionada ao consentimento. Respeitar o NÃO da criança quando algo lhe envergonha, incomoda ou constrange. Sabe quando a gente exige que a criança seja educada e distribua beijinhos e abraços que nem sempre ela quer? Esse ponto é sobre isso também. Eliminar ações que corroboram com uma cultura de “adultização”. Criança não namora.

Criar um canal de confiança e acolhimento com a criança, é essencial para que ela se sinta segura para falar seus sonhos, seus medos, seus questionamentos. Nossa hipocrisia precisa ser diluída até não fazer mais parte de nós, para o bem da humanidade, caso contrário não teremos futuro, já que o presente tem nos deixado um tanto quanto céticos. “Eu fico com a pureza, da resposta das crianças, é a vida, é bonita e é bonita…”, trecho da música O que é, o que é – Gonzaguinha.