A falta de privilégio dos que trabalham em bairros privilegiados na pandemia

BRT superlotado - Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo

A cidade do Rio de Janeiro já contabiliza mais de 9.800 mortos pela Covid-19, segundo o  Data.Rio. Copacabana vem em primeiro lugar na contagem total de infectados desde o início da pandemia, com mais de 3.700 pessoas, seguido pela Barra da Tijuca, com 3.640. Mas os dois bairros de classe média não são os campeões quando o assunto são vidas perdidas para o novo coronavírus. Campo Grande e Bangu, respectivamente, lideram essa lista. Ambos pertencem à periferia da zona oeste do Rio, região mais abandonada da cidade pelas políticas públicas. Apesar da Barra da Tijuca estar na mesma divisão regional que os dois bairos, existem pouquíssimas semelhanças, além da distância geográfica, entre eles. 

Sérgio Menezes, de 33 anos, transita diariamente entre Bangu, bairro que reside, e Barra da Tijuca, onde trabalha como técnico em engenharia clínica em um hospital. “Levo entre 1h30 e 2h para chegar”, conta. Além dos riscos do transporte lotado – Sérgio pega o BRT para o trajeto – o profissional precisa lidar com a Covid-19 bem de perto, já que frequentemente precisa acessar zonas de internação do hospital para checar o funcionamento dos aparelhos. “No início da pandemia, achei que estava ficando com ansiedade, deixei de ver os jornais pois falavam muito em morte e número de contaminados. Chegava no trabalho tinha que me paramentar para entrar no CTI e ver os pacientes daquele jeito. Isso acabou me fazendo muito mal”, relembra.  

Aglomeração pra entrar no BRT – Foto: Débora Castro

Segundo ele, o clima no hospital que trabalha nos dias de hoje está mais tênue, com menos pacientes graves. Mas nos meses iniciais da pandemia viu muitos colegas de sua equipe se tornarem pacientes. “É complicado você vê a pessoa todo dia falando com você, cuidando dos internados e, de repente, se torna um deles”, lamenta. Os funcionários recebem suporte sanitário para prevenção, como máscaras descartáveis e álcool em gel, e os infectados são atendidos no próprio hospital. Porém, a empresa não oferece nenhum tipo de apoio psicológico para que os profissionais lidem com a pressão de estar trabalhando em uma pandemia.

A médica da família Monique França atende muitas pessoas na situação do Sérgio através da plataforma Telessaúde Rio de atendimento remoto do SUS. “É importante, nesses casos, ter uma rede de apoio, nem que seja um grupo de família no WhatsApp. Ter alguém que possa ligar e conversar sobre a semana, dividir o que sente. As clínicas da família têm os agentes comunitários de saúde que podem oferecer esse tipo de apoio também”, explica. 

Rosa e suas máscaras/ Foto: Débora Castro

Moradora do Caeté, na Estrada do Pontal,  zona periférica do bairro do Recreio dos Bandeirantes, Rosa Maria Costa, 60, diagnosticada com enfisema pulmonar, se desloca diariamente para Copacabana, onde trabalha como diarista e acompanhante de idosos. De acordo com ela, o receio maior é o trajeto de até duas horas na ida e dependendo do trânsito, duas horas e meia na volta. “Preciso pegar três tipos de condução: ônibus, BRT e metrô, todos sempre muito cheios, com passageiros sem distanciamento e muitos sem máscara”. Rosa circula pouco por Copacabana, mas eventualmente faz compras para os patrões, um casal de idosos que chegou a pegar Covid-19. “Só que eles fizeram questão de me deixar em casa durante o período e sendo remunerada normalmente”, se alegra. Diferentemente do primeiro caso de morte por coronavírus no estado, de uma empregada doméstica que continuou trabalhando com os patrões doentes. “Me sinto uma privilegiada, sei que por aí a realidade não é essa. Conheço essa família desde pequena, minha mãe trabalhou para eles”, conta. Os patrões também fornecem máscaras e álcool em gel para a profissional e, segundo ela, procuram manter-se distante durante seu horário de trabalho. 

Para os trabalhadores domésticos, a médica Monique França indica cuidados redobrados, já que a convivência é geralmente muito próxima. “Evitem compartilhar materiais de uso pessoal, como copos e talheres. Não que o profissional seja o agente transmissor, às vezes pode ser justamente o contrário. É importante se precaver. O uso de máscara é essencial mesmo dentro da casa dos patrões. Mantenha uma roupa para usar no período de trabalho e outra para circular na rua. Assim que chegar em casa, ponha essa para lavar e tome banho”, ressalta. 

A jovem advogada Lívia Provenzano é moradora de Realengo – bairro que ocupa o terceiro lugar em mortes por Covid-19 com 341 óbitos – e trabalha em um escritório de advocacia na Barra da Tijuca. Lá, recebe todas as condições sanitárias para prevenção da doença. “Na entrada temos um tapete higienizador para os sapatos e a nossa temperatura é verificada assim que chegamos. A empresa fornece máscaras descartáveis que a equipe troca de duas em duas horas. Também não falta álcool em gel para higienização constante das mãos”, comenta.

Lívia tem a possibilidade de ir trabalhar com seu carro pessoal, evitando a aglomeração dos transportes públicos. Os almoços em equipe em restaurantes foram cancelados. Ela conta que ela e os colegas se revezam para usar a copa do escritório, almoçando individualmente, sem compartilharem copos, pratos ou talheres. Apesar de ter uma realidade privilegiada se comparada com outros profissionais que se deslocam de zonas periféricas para trabalhar nas zonas nobres do Rio, a advogada conta que, mesmo assim, sente um alto nível de estresse. “Tudo isso acaba gerando uma ansiedade maior na gente, porque além da insegurança pela pandemia, precisamos nos preocupar com pausas para higienização e troca de máscara. A concentração acaba não sendo tão legal, acabamos perdendo mais tempo e foco no trabalho para ter esses cuidados”, relata.

Os três profissionais comentaram que tanto em seus bairros de residência quanto de trabalho, observam negligência de muitas pessoas, que seguem ignorando as medidas de saúde, se aglomerando em bares e andando sem máscara deliberadamente, mesmo com os índices altíssimos de óbitos e contaminação. Para a médica Monique França, esse negacionismo por parte da população atrapalha a adoção de cuidados preventivos. “A primeira atitude que as pessoas precisam ter é não negar a existência da Covid-19. Infelizmente, hoje vivemos um novo normal e não tem como forçar a barra para voltar a ser o que era. Quando se aceita a existência da doença, fica mais fácil seguir as rotinas de cuidado”, alerta. 

Esta matéria foi produzida com apoio do Fundo de Auxílio Emergencial ao Jornalismo do Google News Initiative.