Desafiado. Fui desafiado. Sob o quente amanhecer, em jejum, à mesa, não veio café, nem algo assim. No entanto, em tudo, parecia ter muito mais consistência o que caía no copo, até poderia alimentar caso permanecêssemos em uma, duas doses. Servido por um camarada elegantemente de linho e com a maior naturalidade, uma referência pra mim na trincheira mais adiante no cerco da verdade, estava rendido. Muito além da minha capacidade de negar. Saímos da padaria com três garrafas de cervejas. E, só dali a três horas, começaria o samba.
Fomos surpreendidos no meio do caminho, interrompidos. De onde talvez as mais ternas e vívidas almas das ruas habitam, como sempre, ou nas esquinas, ou nas mesas de bar. Por hora, sorteados. Tínhamos os dois, orgulhosamente. Era como uma pedra no caminho do poema de Drummond, uma pedra verdadeiramente filosofal.
Havia um desses botequins ao lado do terreno da lendária roda. Discreto em tudo, absolutamente. Não o perceberíamos, caso a fila já houvesse tomado toda aquela área da entrada. Não o perceberíamos, caso estivéssemos passando no entardecer, onde as luzes convidativas do samba atrairiam nossa atenção. E, talvez até não o perceberíamos, se um sambista entusiasmado, ali sentado, sozinho, não nos interrogasse e fizesse questão. Questão de honra.
É preciso compreender, antes de tudo, o que pretendia dizer um velho cineasta com, “fizemos da queda, um passe de balé”, se referindo à censura na ditadura, que sofreram. Ou, como na fala da atriz Glauce Rocha, “A política e a poesia são demais para um só homem”, no filme de Glauber. Esse amigo, viria a nos dizer tudo isso, em outras palavras. Não só em palavras, como, na sabedoria dos artistas da rua.
Nos encontrávamos na Rua do Imperador, Realengo. Onde não havendo estruturas com mais de três andares, cada passo parecia o andar de formigas num deserto. Ao lado do famoso e incontestável Terreiro de Crioulo, samba de raiz, porque sinto verdadeiro preceito naquele quintal, inquieto levantou-se e nos acenou ainda ao longe. Nos cumprimentou eu e Pato, exigindo que sentássemos e sentamos.
Uma dona muito grande nos olhou de dentro do balcão e nos ignorou por completo. Apenas a ouvíamos em intervalos de tempo:
– Vai outra, filho?
Com um certo desleixo, graciosidade e sem escândalos. A dona do botequim.
Fui pegar uma, na eminência de apresentá-los. Petróleo, um sambista conhecido nas rodas, já se havia feito e já pregava com um dom admirável, Pato com seu “Salve Simpatia”, apertava-lhe as mãos e a quem os visse, imaginaria um reencontro. De fato, com a garrafa na mão, pensei, suburbanos são uma raça de gente preparada, não?!
– Você não pode sumir!
Apontando pra mim, prosseguiu, sério e olhar serrado.
– Temos uma demanda para os amigos!
Tomado por uma pausa inspiradora, Petróleo fazia em tom épico que sim com a cabeça, enquanto eu enchia o copo, aguardávamos. O compositor que ora segurava seu gengibre com mel, ora o jogava na mesa, que ora ficava em pé, ora se inclinava para frente e quase por cima de nós, gesticulando, só veio a contextualizar depois de idas e vindas de assuntos e pessoas, que se juntavam e se iam, sumindo, no horizonte largo, daquela rua infinita. Então disse:
– A volta por cima é inevitável, irmãos! Mas isso não será feito, a não ser pelo movimento dos artistas nas ruas. Compreendem? Na lei natural dos encontros, dos artistas nas ruas! Pegaram?
Com uma inflexão mística, havia dado a revelação. Depois, com olhar meditativo, calou-se, como fosse uma espécie de mensageiro de Aruanda, vindo do alto das terras mágicas de Aruanda. Sorrindo:
– Me enche de orgulho!
Também desaparecendo no crepúsculo.
E, lá ficamos até umas doze cervejas, calados, no incessante labor das cervejas. E, calados concordávamos inteiramente.
Pato, como pintor, precisava de cenários e personagens passíveis de inspirarem sua série. Eu, era apenas um cineasta interrompido e um escritor fracassado. E, como que esperando um ato de certeza, do que acreditava vir de mim, me desafiando novamente… Não houve resposta àquela pergunta. Apenas anunciei, aquelas que foram minhas últimas palavras, naquele cair do dia:
– Estou duro, irmão!!
– “John”, Simbóra!!
Saí de lá não me lembro como, contudo com a certeza da jornada adiante e que a cerveja estava batizada. Com a certeza da amizade e a certeza da morte.