Quem nunca ouviu que o “povo brasileiro” não tem memória, que se esquece dos fatos que seriam verdadeiramente importantes? É comum ouvir também que o “brasileiro” lembra daquilo que o convém. Não é o objetivo aqui avaliar cada um desses comentários sobre nossa memória, ou só desse “brasileiro”, como um outro que não eu. E, afinal de contas, quem é esse tal “brasileiro” tão bem definido, a ponto de podermos dizer o que seria comum a todos eles? Nosso interesse neste momento, no entanto, é perceber como a memória, de maneiras diferentes, é um tema de reflexão.

Hoje, dia 29 de agosto de 2008, completa 15 anos da Chacina de Vigário Geral. Qual o sentido de lembrar de um caso de brutalidade policial? De uma represália de agentes da segurança pública a moradores de uma comunidade? As investigações caminharam e foram elucidando o caso como uma reação ao assassinato de policiais por traficantes daquela favela. Lembrar da chacina faz com que possamos pensar no que ocorreu e ainda ocorre entre determinados grupos sociais especificamente em nossa cidade.

Não devemos esquecer que policiais têm como função a proteção dos cidadãos contra aqueles que praticam atos considerados ilícitos. Sem entrar no mérito da função policial, o que vemos na chacina é uma ação com a finalidade de competição na violência. O que está em jogo na visão daqueles policiais com esta ação? Eram amigos dos policiais assassinados? Mostrar para os traficantes quem manda? E por que a ação escolhida foi o assassinato de moradores sem envolvimento com o tráfico? Aterrorizar a vida dos moradores para atingir o tráfico indica de maneira explícita o que significou a vida dos moradores daquela favela, uma moeda na disputa pelo mercado da violência. Mata-se cidadãos numa disputa entre grupos com interesses próprios, policias e bandidos.

Para compreender isso, somente se pensarmos o que significa o pobre favelado para o Estado na sua tarefa de administrador da sociedade, ou melhor, dos negócios de setores político-econômicos. O Estado dialoga com os interesses de quem possui capital e não com mão-de-obra e reserva, que de maneira rarefeita, adquire um estatuto cívico na condição apenas de objetos de políticas assistencialistas ou de consumidores. Falta de escolas, precarização do acesso à saúde e às condições de mantê-la, mas facilidade no crediário.

A lembrança de uma data em um calendário torna presente não só o fato, mas a oportunidade de reavaliar os problemas e conflitos sociais aparentes na sociedade nesse modelo de organização capitalista. Trazer um acontecimento passado ao presente também denota poder, bem como os expõe osinteresses na dinâmica dos conflitos e pressões dos movimentos sociais. As religiões possuem seus calendários, o Estado possui suas datas fundamentais. Por que lembramos o nascimento, a morte e a ressurreição de Cristo? Para reviver os valores de sua vida, mas também e principalmente os valores das instituições envolvidas com estas cerimônias. Lembrar da chacina é chamar a atenção ao que está em jogo no que se refere às imagens do “favelado”, assim genérico, preconceitos, e as instituições sociais envolvidas, polícia, tráfico, milícias, e sociedade civil burguesa. É lembrar as disputas e o tratamento desumano dado às classes populares pelas classes dirigentes que visam tão somente sucesso e ter uma vida tranqüila e segura. O Estado como seu representante no nome de todo “povo brasileiro”. Que povo? Que brasileiro?

Recentemente houve o caso do Morro da Providência no centro do Rio, em que militares se utilizaram de seu poder social para humilhar e subjugar jovens da comunidade. Temos que levar em consideração quem são esses jovens. Quais as redes sociais que eles possuem que proporcionariam algum poder? Trabalhadores pobres que, por não terem segurança, capital social, são tratados como objetos de violência em potencial. Sua fragilidade frente ao sistema oficial que detém o poder público e pode agir em nome dele o joga na gaveta dos problemas que podem esperar, “não me pertencem”. Se não houver uma pressão social, com acumulação de alguma força, uma organização, isso não deixará de acontecer, ao menos impunemente.

Na Baixada Fluminense, policiais fazem represália à própria cúpula da polícia que investigava agentes envolvidos em assassinatos e outros crimes, com envolvimento com o tráfico. Como “greve”, se utilizaram de duas chacinas totalizando um total de 30 mortos, moradores de localidades carentes. A demonstração de poder chaga ao nível ritual com uma cabeça degolada arremessada dentro do quartel.

Hoje faz 15 anos da chacina de Vigário Geral e lembrá-la nos abre este espaço que deve servir de diálogo e compreensão, reflexão sobre as perguntas a se fazer acerca dos significados sociais envolvidos, os problemas, os setores envolvidos e o poder destes. 21 mortes em Vigário, 30 mortes na Baixada, 3 mortes na Providência, com o envolvimento do tráfico da facção rival, de “pobres”, “negros” e “favelados” excluídos do acesso a diversas oportunidades de desenvolvimento de aptidões e alargamento do quadro de escolhas não pesa, não tem o mesmo tempo de TV, proporcionalmente em número de ocorrências, do que a morte de filho de classe média assassinado devido à “violência avassaladora que amedronta os nossos lares sagrados”.

Para que se lembre de alguma coisa é preciso que seus interessados ajam, se organizem. Isso não é nada novo. São 15 anos da chacina de Vigário Geral e nesses anos vimos a favela sendo tratada como lugar de favelados, traficantes, pessoas sem história, apenas imagens, representações, assim como eram tratados escravos e quilombos, com medo e violência.

Victor Amaral – Estudante de Ciências Socais na UERJ