Por Carlos Bruce Batista

Foi numa manhã de um sábado qualquer. Estava em minha casa quando ouvi alguém me chamar; “Marquinhos, sobe no campão aí!!!”.

Como estava muito cansado demorei a interpretar a convocação… ”anda cara sobe aí!!!!” Insistentemente aquela voz não parava de me gritar; “colé irmão…tá demorando muito porra!” A essas alturas a voz já adentrava ao meu quarto, invadia a minha cabeça e incomodava a minha lerdeza. Levantei-me. Esfreguei meus olhos, passei as mãos em meus cabelos, e olhei as horas… ”puta merda 8 horas, mas que porra!!!!”

O dia anterior não havia sido fácil.

Saí do trabalho às onze da noite tendo chegado as seis da matina. Não almocei e também não deu tempo para jantar, estava realmente muito cansado e incapaz de qualquer função que não fossem algumas horas de sono.

Já estava fechando novamente os olhos, quando mais uma vez a voz cumpriu seu papel; “aí tu só pode estar de sacanagem né cara? Marquinhos!!! porra moleque!!”

Por mais que tentasse manter-me acordado, arregalando bastante os olhos, dando pequenas tapas em meu rosto, o peso de uma semana exaustiva de trabalho forçava fisicamente meu corpo para uma única posição. 

Aquela voz já não me incomodava e vagarosamente se distanciava.

Os chamados se tornavam cada vez mais lentos, o silêncio do momento transportava-me para um jardim vasto, repleto de plantas, árvores, cachoeiras e ao meu lado a secretária gostosa do serviço, tudo ao som do Zeca deixa a vida me levar…

Cama quentinha, confortavelmente macia, exageradamente gostosa, deliciosamente espaçosa, sono,soono,soonho,soonnoo…. susto!

Pulei da cama, vesti uma bermuda e fui até a porta que já estava sendo quase derrubada.

A voz enfim havia me alcançado; “porra viado ta morto? não ouviu eu te chamar não? aí vem comigo no campão to precisando de uma ajudinha sua!”

Era do meu primo Lucinho aquela irritante voz. Meio que ainda dormindo e entorpecido por aquele momento único, fui subindo o morro embalado por tudo aquilo até a parte mais alta da colina, o campão.

Lucinho era o dono do morro, mas antes de ser o dono do morro era o meu primo, então sempre que precisava incomodar alguém, este pobre era eu.

O campão estava em festa, a luz forte do sol quase não permitia que eu abrisse os olhos, as pessoas conversando pareciam que estavam berrando propositalmente para me incomodar.

Pais, mães, avós, avôs e crianças, estavam todos acompanhando a festa do campeonato de futebol.

Ainda meio que perdido naquele caldeirão de pessoas, meu primo me chamou; “colé primão, se liga só, arruma esse som aqui que não ta tocando porra nenhuma!”

Como eu sabia lidar com a parte elétrica não tive maiores problemas em botar o equipamento para falar. “Pronto, Lucinho, tá feito cara!”

Quando estava descendo o morro para, então, voltar a sonhar com meu jardim cheio de flores, cachoeiras e com a gostosa da secretária do serviço, de novo ouvi uma voz a me chamar; “Marquinhô chega aí parcero!”.

Desta vez era o Claudinho, meu amigo e vizinho de infância, gerente da maconha do morro.

“Não pode ser, isto não pode está acontecendo” pensei alto. Mas como era o meu camarada senti-me no dever ir falar com ele.

Fui em sua direção, cansado, mas feliz da vida, imaginando que em alguns minutos estaria no meu jardim repleto de arvores, cachoeiras e com a gostosa da secretária.

“Aí maninho, me faz um favorzão?” disse Claudinho.

Respondi positivamente, embora estivesse muito cansado.

“Então, segura este bico pra eu poder entrar na casa de minha mãe e pegar uma camiseta.”

Fiquei meio receoso mas acabei cedendo ao pedido.

Passaram-se uns quinze minutos e Claudinho voltou mastigando uma maçã e com a camiseta nos ombros. “Valeu magrinho (como também me chamavam no morro) fica com Deus.”

Agora sim poderia ir de encontro com a minha aguardada cama para reencontrar o imenso jardim e a secretária gostosa.

Quando estava entrando em minha casa, inacreditavelmente, mais uma voz começou a me gritar desesperadamente; “Marquinhos… Marquinhos, a mãe tá mal, temos que levá-la ao hospital urgente… Marquinhô… Marquinhô!”

Não tive muito tempo para pensar e rapidamente vesti uma blusa e preocupei-me em agilizar a ida da coroa para o hospital mais próximo.

Corri na casa do Betinho, que tinha uma Kombi, e lá ele não estava. Sua esposa disse-me para ir ao campão.Subi o morro o mais rápido que pude para encontrá-lo. “Betinho to precisando que leve minha mãe ao hospital, a coroa ta morrendo irmão!”

Desci novamente o morro, junto com o Betinho, até a casa de minha mãe.

Carregamos minha coroa até a Kombi e nos dirigimos para o hospital.

 Agradeci o Betinho e providenciei rapidamente uma maca.

 Depois esperei e esperei muito. Percebi o quanto eu e todas aquelas pessoas que aguardavam algum atendimento éramos invisíveis. Esperei acordado à tarde e a noite toda notícias de minha mãe, que só havia sido atendida algumas horas depois de sua chegada ao hospital.

Na manhã seguinte soube por um enfermeiro que a coroa estava bem e que não iria morrer. Aliviado fui tomar um café num boteco perto do hospital. Enquanto saboreava o café forte e devorava um pedaço de pão com mortadela, li alguns jornais que estavam à mostra na banca próxima ao boteco.

Novamente mais um susto. Na capa de um dos jornais estava exposta minha foto, com um fuzil na mão e com a seguinte notícia; “Traficante exibe seu poder no morro”.

Li e reli algumas vezes a capa não acreditando ser realmente eu que estava ali. Percebi que algumas pessoas que acompanhavam minha leitura me olhavam com medo, raiva, indignação e revolta. Apavorado joguei fora o restante do pão e voltei ao hospital para avisar a minha irmã do acontecido.

Assim que cheguei ao hospital, ofegante, minha irmã chorando como se quisesse me avisar alguma coisa, acompanhou de longe uns quinze policias me jogando ao chão, chutando minha cara dizendo que eu havia perdido.

De dentro da viatura, com a cara toda ensangüentada, ainda pude observar minha irmã consternada diante daquela cena jamais imaginada.

Desta vez notei que minha invisibilidade em determinadas ocasiões era extremamente vigiada.

Na delegacia fui muito pouco ouvido por uns policiais que só me chamavam de safado e mentiroso. Em vão tentava explicar o mal entendido, muito bem “entendido” pelos jornalistas que cobriam minha prisão e comemoravam o momento com os policiais.

Fazia algumas horas que eu não dormia, meu corpo por mais que tentasse o contrário já não resistia ao cansaço de tudo aquilo. Me jogaram numa cela, com muitos outros presos que ultrapassavam o limite físico do espaço, e disseram-me para que não deixasse de ler as matérias policiais do dia seguinte.

Sentei-me espremido num canto da cela, encostei minhas costas na parede e então dormi…dormi…e já não estava mais ali, estava num jardim vasto, repleto de plantas, árvores,cachoeiras e ao meu lado a secretária gostosa do serviço tudo ao som do Zeca, deixa a vida me levar….