Ainda é noite quando Elcilene Santos, de 46 anos, acorda para ir trabalhar. Às 4h30, já está no ponto de ônibus aguardando a primeira das três conduções que pega até chegar ao serviço. Ela trabalha como empregada doméstica em Botafogo, zona sul do Rio, e mora no bairro Vila Maia, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Para atravessar os quase 50 km que separam os dois lugares, gasta cerca de três horas todas as manhãs e outras três no final da tarde para voltar pra casa.
Só com transporte, Elcilene gasta um quarto do seu dia. As viagens, que consomem seu tempo, também têm impactos na sua saúde e geram custos altos. “O ônibus que eu pego aqui em Belford Roxo, quando atrasa, eu vou em pé. Já o trem, se eu consigo chegar a tempo, como pego na estação final eu consigo ir sentada. Agora o metrô, não tem jeito, é sempre lotado e eu vou em pé”, explica Elcilene. Juntas, as tarifas das seis conduções diárias custam pouco mais de R$ 27. Um gasto que, no final do mês, ultrapassa R$ 540, mais da metade de um salário mínimo.
O custo com transporte público representa uma fatia significativa da renda das famílias brasileiras, especialmente das pessoas mais pobres. A última Pesquisa de Orçamento Familiar (2017-2018), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelou que 18,1% das despesas de consumo das famílias são destinadas ao transporte. Pela primeira vez, o percentual do orçamento destinado à mobilidade foi maior do que o percentual destinado à alimentação, que foi de 17,5%.
No caso de Elcilene, a condução para o trabalho é custeada pelos patrões, mas isso não anula os impactos sociais sentidos pela doméstica. “Eu já me senti bastante prejudicada, porque às vezes os patrões acham o valor da passagem da gente que mora na Baixada muito caro e muitos não querem”, explica.
O gasto com o transporte não é a única questão levantada pelos empregadores ao contratar um funcionário, especialmente, aqueles que residam longe do local trabalho. Possíveis atrasos e faltas por conta de intervalos irregulares ou veículos quebrados entram na balança na hora da contratação. Uma experiência comum para quem mora longe das regiões centrais não apenas em grandes capitais do país, como também, em cidades pequenas.
É na cidade de Rio Branco, capital do Acre, que vive Maria de Jesus, de 39 anos. Apesar do tamanho territorial da cidade ser pequeno, se comparado a outras capitais do país, a pouca oferta de ônibus dificulta a circulação para quem precisa usar transporte público. Ela conta que a espera por um veículo durante a semana pode chegar a até uma hora e nos finais de semana esse intervalo mais do que dobra, chegando a 2h30.
“Os finais de semana são os piores dias. Os poucos ônibus são reduzidos mais ainda. Você tem que pegar transportes alternativos, como táxis, moto ou van. São todos bem caros, mas é isso ou passar o dia nas paradas de ônibus à espera de um”, conta Maria. Ela diz evitar sair de casa durante os finais de semana para poupar tempo e dinheiro. “Pra ir de ônibus, eu nunca saio. Só saio quando tenho dinheiro pra usar transporte alternativo. Não tem como sair para passear de ônibus e chegar ao destino quase na hora de voltar”, explica.
Maria trabalha como empregada doméstica no bairro tropical, que fica a pouco mais de 4 km de sua casa. O trajeto curto poderia ser percorrido em menos de 10 minutos, no entanto, ela costuma levar quatro vezes mais do que isso: 40 minutos. Na volta do trabalho, a espera é ainda maior. A pouca oferta em períodos de grande movimento resultam em carros cheios, intervalos mais longos e mais tempo gasto para entrada e descida de passageiro. Os 40 minutos transformam-se em quase 2h.
Os patrões de Maria também custeiam o valor do transporte, porém quando precisa pegar veículos alternativos o valor sai do salário-mínimo da doméstica. Segundo ela, boa parte do salário tem sido usada com transporte. Para evitar ser prejudicada no trabalho, ela acaba arcando com as despesas extras. “Eu tenho receio de ser prejudicada, de ser dispensada ou de ser chamada atenção por causa de atraso. Dispensada eu nunca fui, mas já fui chamada atenção pelos patrões por chegar atrasada”, recorda, Maria de Jesus.
No Brasil, cerca de 15% das mulheres se dedicam ao trabalho doméstico remunerado, segundo dados do Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, um estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Esse percentual sobe para 18% se considerarmos apenas as mulheres negras e cai para 10% entre as brancas. Apesar de ser a maioria na categoria, as mulheres negras recebem, em média, R$ 694 mensais, enquanto as mulheres brancas ganham R$ 824. Para elas, elas o custo com transporte gera um impacto significativo na renda.
O custo é um fator importante, mas não pode ser o único a ser observado quando se discute sobre mobilidade, raça e gênero, conforme explica Clarisse Linke, Diretora Executiva do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP). “A população negra e de baixa renda é a que está mais nas áreas periféricas da cidade, são pessoas que também estão mais distantes dos transportes de alta capacidade. Além de serem atendidas por serviços mais precarizados, precisam se deslocar longas distâncias para acessar oportunidades de trabalho, de estudo, lazer ou serviços públicos”, explica Clarisse.
Além disso, o impacto das jornadas de trabalho somadas a viagens longas e desconfortáveis pesa mais sobre a rotina da mulher do que sobre a rotina dos homens. Isso porque as mulheres acumulam mais funções para além do serviço remunerado, como o cuidado com o núcleo familiar e, também, com os afazeres domésticos. As atividades à jornada de trabalho geram também deslocamentos, expondo mais às mulheres as condições da mobilidade urbana nas cidades onde vivem.
“Eu tenho pensado cada vez mais sobre o desenho do sistema de transporte, que é pensado para dar conta do nosso sistema produtivo. É só você perceber como se lida com o horário de pico, colocando mais carros em um período determinado da manhã e da tarde, ida e volta do trabalho. Só que quem faz mais essa viagem linear é o homem, a mulher cuida dessas outras atividades que demandam outros destinos”, avalia, Clarisse Linke.
Concentração de oportunidades e deslocamentos pelas cidades
Para pensar a mobilidade urbana de uma cidade é preciso olhar para além dos sistemas de transporte, como explica a diretora executiva do ITDP, Clarisse Linke: “é importante que a gente entenda que somente o transporte não dá conta da mobilidade como um todo. Além do transporte, a gente precisa discutir uma redistribuição da cidade. Nós temos concentração de oportunidades e populações cada vez mais dispersas sobre o território, especialmente populações com renda mais baixa”, explica Clarisse, que trabalha na área há quase 20 anos.
O desequilíbrio territorial empurra as pessoas a buscarem trabalho em lugares distantes da sua residência, às vezes até em cidades vizinhas. A concentração de oportunidades, mencionada por Clarisse, diz respeito também ao acesso à educação, cursos, áreas de lazer e equipamentos culturais, além de serviços públicos como hospitais.
“A concentração de serviços e oportunidades nos grandes centros urbanos têm atraído a população para as cidades há décadas. Mas é efetivamente possível que as pessoas acessem todas essas oportunidades e serviços? Quando se fala sobre direito à cidade, se fala sobre acesso. Acesso de várias formas, acesso financeiro, acesso do ponto de vista físico e também simbólico, já que a gente sabe que há pessoas que não são muito bem-vindas em alguns espaços por conta da sua cor, do seu gênero ou da classe social. A gente entende que o transporte entra nisso, ele vai viabilizar esse acesso ou vai ser um obstáculo?”, questiona, Clarisse Linke.
Nos municípios das regiões metropolitanas monitorados pela Mobilidados, plataforma de indicadores vinculada ao ITDP, desconsiderando as capitais, 38% das pessoas ocupadas trabalham fora do seu município de residência. A necessidade de realizar viagens intermunicipais é, segundo o estudo, um dos principais motivos para os habitantes gastarem longos períodos no deslocamento. Cidades como Recife, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Curitiba, Distrito Federal e São Paulo têm pouco mais de um terço da sua população trabalhando e residindo em municípios diferentes.
Em curto prazo, a redução do valor do transporte, assim como, uma maior oferta de veículos poderia melhorar a mobilidade, mas a solução estaria em mudanças estruturais mais profundas no desenho das cidades. Segundo Clarisse, é preciso redistribuir a concentração de oportunidades, criando novos centros. Enquanto for necessário cruzar cidades para acessar oportunidades de trabalho, educação, saúde e lazer dificilmente os transportes conseguirão dar conta, especialmente nas regiões mais populosas.
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