A Prospect, revista britânica criada em 1995, publicou em janeiro último um artigo do ambientalista Stewart Brand com o provocador título: How slums can save the planet (Como as favelas podem salvar o planeta)[1]. Brand procura mostrar como as características espaciais, sociais e (principalmente) ambientais das favelas estariam muito de acordo com as idéias e propostas do “Novo Urbanismo” (norte-americano), corrente surgida nos anos 90 do século passado e muito influente hoje em dia[2].
Como tentarei mostrar, o mérito do artigo resume-se quase exclusivamente em romper com a visão tradicional e ainda dominante entre “especialistas” (urbanistas, arquitetos, administradores, etc) e também no senso comum, que consideram as favelas como um erro ou uma deformação na cidade, ou simplesmente como a própria “não-cidade”, como um resumo vivo de tudo que deve ser evitado quando se fala em desenvolvimento urbano. Essa posição anti-favelas já foi muito mais forte no passado, mas ainda hoje prevalece, ainda que a linguagem tenha mudado um pouco. Por exemplo, é lugar comum hoje em dia, mesmo entre urbanistas e arquitetos dedicados a apoiar movimentos de pobres urbanos como os sem-teto, atacar a “auto-construção” realizada por moradores de favelas e bairros pobres. Na verdade, “auto-construção” tornou-se quase um adjetivo, quase um sinônimo de tosco, mal-feito, irreparável. Como a favela é uma “auto-construção” coletiva de seus habitantes, então também ela seria tosca, mal-feita, irreparável. Aliás, ainda hoje, quando se fala em alterar (para melhor) as características de uma favela, não falamos em “urbanizar a comunidade”, insistindo na visão de que a favela é a não-cidade (não-urbana)?
Há bastante tempo não me sinto à vontade com esse tipo de visão “urbanista” sobre as favelas. Num texto escrito há quase dez anos, a critiquei nos seguintes termos: O “urbanismo de favelas”, mais uma ciência especificamente carioca, jamais conseguiu se libertar de sua estreita visão de classe, isto é, jamais partiu das verdadeiras origens sociais e históricas das favelas. Por isso mesmo, jamais conseguiu incorporar as originais, improváveis e muitas vezes fantásticas soluções arquitetônicas e de engenharia (incluindo formas coletivas de trabalho como os “mutirões de bater laje”) que o povo da favela criou para contornar sua falta de recursos, infra-estrutura pública e as dificuldades geológicas e topográficas dos morros e brejos.[3]
Pobreza, auto-construção e apropriação tecnológica
Claro que o reconhecimento de soluções criadas pelos próprios moradores de bairros pobres tem seu lado perigoso. São “soluções” ditadas acima de tudo pela falta de recursos privados e principalmente pela falta de investimento público[4], logo são em grande medida “quebra-galhos” que os próprios pobres urbanos abandonariam ou aperfeiçoariam caso pudessem[5]. A questão é que penso que mais aperfeiçoariam que abandonariam.
A espécie humana tem “auto-construído” suas habitações e a maior parte de suas cidades há milhares de anos; contratar terceiros para planejar e construir suas casas só deixou de ser privilégio de uma reduzida elite há bem pouco tempo. Na sua prática de “auto-construção” os trabalhadores do campo e da cidade desenvolveram capacidades que normalmente são compartilhadas pelas comunidades. Pedreiros, carpinteiros e estucadores mais experientes ainda hoje são bastante requisitados nas favelas, embora as formas de transmissão de experiência e conhecimento tenham se enfraquecido devido ao individualismo estimulado pela economia mercantil. Promover e estimular esse conhecimento e seu desenvolvimento deveria ser parte essencial de qualquer política urbana com objetivos emancipatórios.
Uma das conquistas mais inventivas da “auto-construção” popular é a maneira como ela se apropria de tecnologias modernas para resolver problemas urbanísticos ao nível local. A utilização do concreto armado, tecnologia bem recente (pouco mais de um século), na construção de habitações pobres (ou habitações com poucos pavimentos em geral) é muitas vezes visto como uma aplicação tosca e dispendiosa de um material idealizado originalmente para grandes estruturas. Entretanto, nas condições de pobreza e acesso da favela, são evidentes as vantagens em transporte e aquisição parcelada de materiais do concreto armado, mesmo sobre a madeira onde ainda ela é disponível e barata. Mais do que isso, devido à pequena área dos lotes habitacionais, o concreto armado permite a única expansão possível das casas (ou seja, vertical) de forma incremental. E uma laje exposta (algo que será condenado de cara por qualquer engenheiro, que irá mostrar as “vantagens” de um simples telhado) de concreto armado cria uma área onde múltiplas atividades sociais podem ser realizadas, principalmente festas. A laje de concreto armado recupera pelo menos em parte o quintal perdido pelo adensamento das favelas (voltarei a esse conceito de “favelas densas”). Há aqui racionalidade e melhoria da qualidade de vida, e não simplesmente erro e grosseria.
Por outro lado, não é absolutamente verdade que ditas “habitações populares” planejadas por arquitetos e construídas sob direção de engenheiros sejam necessariamente melhores que as “auto-construídas”. Conheci (inclusive profissionalmente) muitos conjuntos habitacionais “para baixa renda” e fiquei estarrecido com a capacidade de “profissionais” que tanto estudaram, idealizarem e colocarem em prática coisas tão inabitáveis, minúsculas e mal-ventiladas[6].
Falando dos conjuntos habitacionais, principalmente aqueles imensos e monótonos conjuntos de casinhas ou blocos de prédios idênticos (hoje unanimemente condenados por quase todas as correntes da arquitetura e do urbanismo, mas que continuam a ser construídos aos montes para os pobres) somos levados a um outro aspecto importante da “auto-construção”: a expressão da individualidade, da personalidade. No aparente caos de tamanhos e “estilos” das casas de uma favela, vemos não obstante como cada morador tenta deixar sua marca, sua presença diferenciada, sua história. Isso pode ser visto como algo equivalente ao “design eclético” pregado pelo “Novo Urbanismo”, mas lembro que esse tipo de expressão individualizada e historicizada é considerada uma parte essencial do direito à cidade segundo o próprio criador do conceito, Henri Lefebvre.
Favelas e espaços urbanizados pelos pobres
O artigo da Prospect fala de favelas em geral, mas é evidente que se refere a um tipo mais específico de urbanização realizado pelos pobres (sim, já estou aqui afirmando que a favela é cidade e que seu desenvolvimento é um tipo de urbanização do espaço, ainda que os seus méritos face a outros tipos de urbanização possam – e devam – ser questionados), que eu chamaria de favelas densas. Com efeito, é principalmente na alta densidade que Stewart Brand vê a proximidade entre as favelas e o “Novo Urbanismo”.
Entretanto, concentrações muito densas, como são as favelas mais antigas situadas em morros ou antigas áreas pantanosas no Rio de Janeiro, estão longe de ser a única forma de urbanização praticada pelos pobres das cidades. Tão importante quanto elas são as áreas ocupadas de forma mais dispersa, quase sempre nas periferias, com lotes individuais e inclusive habitações de tamanho razoável, uma descendência direta de habitações rurais. Essas regiões têm baixa densidade, não se enquadram na maioria das virtudes enumeradas por Brand, mas em pelo menos um aspecto realizam a “ecologia de reconciliação” que ele sonha poder ser realizada nas favelas: o cultivo urbano, a divisão de espaço entre humanos e animais. “Telhados verdes” e estufas para cultivo, como aventadas no artigo, ainda são uma perspectiva um tanto futurista, mas hortas, pomares e pequenas criações são bastante comuns nas “favelas dispersas” das periferias, também “auto-construídas” mas distintas das favelas densas.
Esses duas formas típicas de ocupação urbana correspondem na verdade a estratégias diferentes, mas não inconciliáveis, adotadas pelos pobres das cidades em sua luta de resistência/sobrevivência.
As favelas densas buscam principalmente maximizar as vantagens de se estar próximo das regiões das cidades onde se concentram as atividades econômicas e dotadas de melhor infra-estrutura urbana. É bem mais fácil obter abastecimento de energia elétrica e água, e ainda são maiores as oportunidades econômicas, nas áreas centrais e “antigas” das cidades que nas periferias. Os custos de transporte, seja para o trabalho ou o lazer, também são bastante reduzidos, muitas vezes é possível o deslocamento a pé ou em bicicleta.
Mas não se reduz tudo a esses aspectos econômicos e/ou ambientais. O adensamento e a conseqüente pequena ou mesmo minúscula área das habitações só se torna justificável a partir do momento em que os moradores dessa comunidade passam na verdade muito pouco tempo em suas casas, mesmo fora do horário de trabalho. Nas áreas centrais e “antigas” as opções culturais são variadas e mais acessíveis (embora a mercantilização dos espaços trabalhe com afinco contra isso), as ruas ainda são espaços de convivência, a proximidade compensa o aparente “amontoamento”[7].
Já as favelas dispersas das periferias buscam as vantagens da maior disponibilidade e menor valor do solo urbano: habitações mais confortáveis, lotes maiores onde podem ser instalados quintais e onde podem ser praticadas atividades produtivas de caráter rural (cultivo e criação) ou urbano (oficinas, garagens, depósitos e até pequenas manufaturas, etc). As (grandes) desvantagens da distância dos centros e do custo do transporte são contrabalançadas por possíveis atividades alternativas geradoras de renda, e principalmente por um tipo de convivência social e cultural mais familiar, mais próximo da vida rural ou de pequenas cidades do interior[8].
Essas diferentes formas de urbanização (ou peri-urbanização, para utilizar um termo em voga), que correspondem a diferentes estratégias que podem ser refinadas e modificadas por movimentos sociais, correspondem também, no fundo, a diferentes perspectivas culturais, a diferentes visões sobre sociabilidade e relação entre as pessoas e o espaço, que de maneira nenhuma podem ser hierarquizadas ou julgadas por critérios econômicos e ambientais. Ambas são a princípio viáveis e a princípio sustentáveis, e a coexistência de ambas permite a existência de uma bem vinda liberdade de escolha (que não deve ser confundida com a “vontade do consumidor” ou a “livre iniciativa” capitalista) entre diferentes modos de se viver na cidade. Aliás, conheço mais de um caso de grandes famílias proletárias cujos locais de moradia distribuem-se pelos dois tipos, e cujos membros visitam-se freqüentemente, propiciando assim que todos possam usufruir das vantagens (e sofrer as desvantagens, é claro) de cada um.
Na verdade, estes dois tipos de urbanização “auto-construídos” pelos pobres também correspondem de forma bem próxima aos dois tipos de moradias típicas da classe média urbana atual, normalmente nunca “auto-construídos”: os prédios de apartamentos em bairros densos (como a Zona Sul ou a Tijuca no Rio) e as casas amplas em bairros mais afastados e de baixa densidade. Por mais que há anos arquitetos e urbanistas venham tentando provar que uma forma é superior à outra, a verdade é que ambas subsistem e continuam a ser procuradas. Não há teoria urbana (ou ideologia urbanista) que consiga homogeneizar os gostos, as perspectivas e as sensibilidades das pessoas…
Entretanto, quando se trata dos pobres, o mercado imobiliário e o Estado sempre buscam, autoritária e mesmo violentamente, impor um “modelo” de urbanização e moradia, que normalmente consegue juntar o pior das diferentes formas de urbanização, sem quaisquer de suas vantagens. Estou pensando aqui principalmente nos monstruosos conjuntos habitacionais construídos em periferias distantes, onde não há infra-estrutura de serviços sociais e poucas oportunidades de emprego, e onde as habitações (e lotes, quando são moradias unifamiliares) são minúsculos e verdadeiramente amontoados. A perversidade destes “projetos de habitação popular” é tamanha que eles cada vez mais são feitos de maneira que não haja modificação possível por parte dos moradores. Os blocos de apartamento construídos como parte das obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) em algumas favelas do Rio, por exemplo, foram idealizados para serem “anti-puxadinhos” (puxadinho é o aumento popular de imóveis construídos originalmente sem essa previsão de expansão – como é uma “auto-construção” é condenado pela arquitetura dominante), e fez-se ampla propaganda elitista sobre esse fato. Mas existe uma lógica e um objetivo nessa perversidade: a expulsão dos pobres das áreas valorizadas e sua compactação em áreas segregadas. Voltarei a isso.
Sustentabilidade, cidade e campo
Brand acompanha o “Novo Urbanismo” e grande parte dos ambientalistas atuais ao propor que somente um modelo de urbanização muito denso pode ser sustentável, diante do aumento da população do planeta e do consumo de recursos naturais, principalmente energia. Já li inclusive opiniões de que o único modelo de moradia viável a longo prazo são prédios de apartamentos cada vez mais altos em cidades compactas, pois se o modelo de moradias unifamiliares dos subúrbios norte-americanos[9], por exemplo, fosse generalizado, não haveria solo suficiente na Terra.
Algumas dessas noções são obviamente exageradas. O planeta tem hoje cerca de 6,7 bilhões de habitantes; supondo que toda essa população fosse urbana (hoje só um pouco mais da metade é), tomando famílias médias de 5 pessoas (a média global real deve ser maior, mas tem caído de forma sustentada ao longo do tempo) e moradias unifamiliares ocupando a generosa área de 500 m2 cada uma, o total de área que seria coberta por tais habitações seria próximo a 670 mil km2, menos que a superfície ocupada pelo estado do Mato Grosso no Brasil[10]. É verdade que a situação é próxima do limite em algumas regiões mais superpovoadas do mundo, mas, de um ponto de vista global, o que implica a possibilidade de um planejamento mundial que proporcionasse uma distribuição mais equilibrada da população humana, não se podem fazer prognósticos catastróficos a partir apenas de dados geográficos e modelos urbanísticos.
Os limites colocados a uma distribuição mais equilibrada do espaço urbano não são intrínsecos ao espaço geográfico ou às tecnologias disponíveis, são conseqüências da dominação econômica e política global do capitalismo: encarecimento do solo urbano, barreiras à imigração, economia automobilística, etc. Quem vê a economia de mercado, a acumulação de capital e a propriedade privada da terra e dos meios de produção, como dados insuperáveis e inevitáveis, obviamente só pode limitar sua reflexão ao tipo de cidade que o capital cria. Em particular, aceita sem questionar o tipo extremamente desequilibrado de relação campo-cidade imposto pelo capitalismo.
Já é lugar comum dizer que a urbanização do mundo é “irreversível”, porém esta afirmação genérica conduz inevitavelmente a considerar o “esvaziamento do campo” como um fenômeno independente das condições econômicas e sociais, e portanto a forma de urbanização atual como a única possível. A cidade contemporânea depende do campo para o fornecimento de matérias-primas, energia e, principalmente, de alimentos, tanto como em outros períodos históricos. Todas as elucubrações sobre a produção de alimentos dentro das cidades até hoje não passaram de fantasias. A mudança decisiva aconteceu na verdade no próprio campo. A industrialização da agropecuária, comandada pelo capital, levou ao predomínio da produção com baixa utilização de mão-de-obra permanente, e é isso que esvazia as áreas rurais e enche as cidades. Veja bem, não é verdade que essa é uma situação inevitável para se obter altas produções por área cultivada. Está provado que tipos de cultivo intensivos em mão-de-obra (como a chamada “agricultura de jardim” na Ásia, ou certas experiências de “agroecologia” e “agricultura orgânica” atuais) tem possibilidade de produzir tantos alimentos por hectare quanto produções mecanizadas (na maioria das vezes com vantagens ambientais, como menor utilização de defensivos e/ou fertilizantes químicos). Claro que numa produção intensiva em mão-de-obra, parte maior dos alimentos fica retida no próprio campo, não vai para as cidades, mas em compensação parte maior da própria população também permanece no campo.
O capitalismo conduz à mecanização da produção agropecuária não devido a considerações tecnológico-ambientais, mas devido a considerações de lucro. A produção agroindustrial como predomina hoje não é necessariamente maior por área cultivada, mas certamente tem custos financeiros menores (e, quase sempre, custos ambientais maiores). Mesmo em regiões onde a produção mecanizada não se implanta, o esvaziamento dos campos resulta da concorrência do mercado globalizado do agrobusiness. Esvaziamento do campo e adensamento urbano da população não são produtos da “indústria” genericamente falando, e sim da indústria dominada e comandada pelo capital.
Os socialistas do século XIX ou mesmo os pré-socialistas do século XVIII tinham boa compreensão disso tudo, e colocavam como meta de transformação social o fim da oposição entre cidade e campo, contra a submissão do campo pela cidade característica do capitalismo (mas também contra o domínio da cidade pelo campo característico de sociedades pré-industriais). Os urbanistas do século XX, tanto os “modernos” como os “pós-modernos”, foram se afastando progressivamente dessa compreensão, na mesma medida em que aceitavam a inevitabilidade e a eternidade do capitalismo. O campo não merece mais que poucas linhas em suas reflexões e propostas[11]. O “urbanismo”, assim, torna-se mais um tipo de conhecimento fragmentado, talvez útil para produzir “políticas públicas” nos estreitos limites permitidos pelo capital, ou planejar pequenas comunidades de classe média, mas incapaz de uma apreensão global da realidade social e espacial, necessária para práticas efetivamente transformadoras.
Capitalismo, pobreza e resistência na construção de cidades “verdes” e melhores… ou piores
A noção de que cidades densas são as únicas e necessárias formas de distribuição “sustentável” da população humana sobre a Terra apóia-se portanto na aceitação de fenômenos não necessários nem inevitáveis, como a industrialização poupadora de mão-de-obra da agricultura (e a conseqüente transformação do campo num imenso “deserto verde” de plantações, pastos e reservas naturais inabitadas), a concentração da propriedade e o encarecimento do solo urbano, etc. Excluindo essa falsa conclusão, o que resta da “salvação do planeta pelas favelas”, segundo Brand? Algumas virtudes atribuídas às favelas no seu artigo são variações do tema “densidade”, mas outras são óbvias conseqüências da pobreza dos seus moradores: o pequeno uso de energia e materiais, e a reciclagem como “meio de vida”. Não há dúvida que estratégias de sobrevivência motivadas pela pobreza podem contribuir para estratégias de sustentação de um planeta que em prazo muito breve pode sofrer grande penúria de energia e determinadas matérias primas devido ao esgotamento de recursos não renováveis. Mas porque não atacar frontalmente o desperdício dos ricos e das empresas, que é o grande problema? E porque não propor recompensas reais aos pobres por suas iniciativas “verdes”[12]? Catadores de material reciclável são extremamente mal-pagos por um trabalho duro e sujo, e trocam de atividade assim que conseguem um trabalho que propicia ao menos a mesma renda. Uma cidade “verde” baseada na pobreza da maioria de seus habitantes, é algo tão perverso como um crescimento econômico estimulado pelo corte de direitos e investimentos sociais, ou pela diminuição dos custos salariais.
Finalmente, Brand aponta características das favelas, mais relacionadas ao comportamento social e à convivência de seus moradores, e que as tornam inclusive mais interessantes que outras formas de urbanização densa (como os prédios de apartamentos da classe média): nas favelas pode-se “andar”[13], encontrar e conhecer os vizinhos, “elas são melhoradas de forma constante e gradual pelos próprios moradores”, suas ruelas “são uma mistura densa de comércio e serviços”[14]. Aqui sim apontam-se verdadeiras contribuições da urbanização favelada (embora só se considere sua modalidade “densa”) para uma cidade melhor, e não por acaso elas nascem das estratégias de resistência dos pobres urbanos.
O que Brand não percebe ou não destaca é que a pobreza, o capitalismo, e as políticas (ou falta de políticas) estatais conspiram permanentemente contra essas aquisições urbanas das favelas. Como observou Mike Davis, a pobreza urbana extrema pode levar a uma “impiedosa competição darwinista, quando um número cada vez maior de pobres compete pelos mesmos restos informais, gera [….] uma violência comunitária que se aniquila a si mesma como forma ainda mais elevada de ‘involução urbana’”[15]. Não é preciso falar muito dos sinais dessa “involução” nas favelas e periferias do Brasil, por exemplo. Mas é preciso acrescentar que essa “violência comunitária” só se torna horrivelmente destrutiva quando a economia globalizada (tráfico internacional de drogas e armas, principalmente) consegue envolver os “restos informais” em seus circuitos sinistros[16].
As favelas “melhoradas” por seus moradores raramente encontram-se em paz com o restante da cidade. As favelas densas nas áreas centrais (incluindo aqui cortiços e prédios ocupados) expandem-se ou são atacadas conforme as ondas de decadência/revalorização da cidade “formal”. A remoção pura e simples de moradores pobres ainda é buscada, sob pretextos diversos, sendo um dos mais comuns hoje em dia a “preservação ambiental” ou retirada das ditas “áreas de risco”. Entretanto, a modalidade de ataque aos pobres que se torna predominante nestas áreas responde pelo nome de “revitalização”. Como está muito bem colocado num artigo de Jean-Pierre Garnier no último número do Le Monde Diplomatique Brasil: “Atualmente a palavra de ordem não é ‘destruição’ […] e sim ‘reabilitação’, ‘regeneração’, ‘revitalização’, ou ainda ‘renascimento’ […] essa terminologia visa sobretudo dissimular uma lógica de classe: reservar os espaços ‘requalificados’ às pessoas ‘de qualidade’”; citando um geógrafo belga Garnier completa “Todos esses termos que começam por ‘re’ são a priori positivos para a cidade, mas excluem completamente a questão social […] quando um bairro torna-se descolado e entra na moda, isso implica que parte dos moradores será ‘descartada’. A região ‘melhora’, mas não para as mesmas pessoas”[17].
Já as áreas habitadas pelos pobres em regiões periféricas atingidas pela expansão imobiliária empresarial, sofrem mais cruelmente as tentativas de remoção. Os moradores ou são obrigados a irem para mais longe ainda, ou são amontoados em conjuntos habitacionais de péssima qualidade. Em todo caso, perdem melhorias e relações de vizinhança construídas com dificuldades durante anos.
Apartheid urbano
Esses conflitos espaciais nas cidades agravaram-se muito nos últimos trinta ou quarenta anos. O baixo crescimento da economia mundial, o alastramento do desemprego e da precarização, a maior desigualdade e a diferenciação de uma classe média socialmente conservadora e ciosa de seus frágeis privilégios, o crescimento do capitalismo mafioso e a violência urbana crescente, a de-responsabilização social do Estado pregada pelo neoliberalismo, o ambiente ideológico que se seguiu à derrocada do socialismo de Estado, tudo leva a burguesia e a (maior parte da) classe média urbanas buscarem separar e segregar cada vez mais os espaços dos pobres. Quando não conseguem delimitar espaços suficientemente distantes entre si, tratam de cercar os pobres “intrusos” com barreiras físicas ou institucionais, mas sempre relacionadas à “segurança”, enquanto o racismo e a ideologia colonial constituem um eficiente pano de fundo.
Esses fenômenos repetem-se por todo o mundo, com intensidade variável, mas é talvez na Palestina ocupada por Israel que suas modalidades aparecem de forma mais clara e extrema. De um lado está Gaza, imensa favela compacta, que Israel descartou para seus planos de assentamento de colonos desde que o Hamas assumiu o controle interno do território. Que é mantida, contudo, militarmente cercada e sob um bloqueio econômico somente comparável a sítios de cidades como Leningrado durante a Segunda Guerra Mundial. O que não impede periódicas incursões militares violentas, como a “Operação Chumbo Fundido” do final de 2008-início de 2009.
De outro lado a Cisjordânia, uma rede peri-urbana de cidades, vilarejos e campos cultivados, onde os crescentes assentamentos coloniais israelenses disputam palmo a palmo de espaço com campos de refugiados e bairros árabes antigos. Através de inúmeras ações, como cercas, barreiras, expropriações e demolições sob os mais diferentes pretextos, controle policial da circulação, incursões militares, o Estado israelense vai tentando comprimir os palestinos em áreas cada vez menores, para liberar espaço para os colonos. E, seja como for, tudo é feito para manter as duas populações rigidamente separadas, principalmente em termos de território.
Na Palestina a disputa pelo espaço assume um caráter diretamente colonial, com os israelenses justificando com uma suposta eleição divina (“povo escolhido”) seu “direito” de tomar as terras que querem. Na maior parte do resto do mundo esse tipo de afirmação colonial é mais raro, mas é óbvio o sentimento de superioridade das classes ricas e médias, que se julgam mais que merecedoras das melhores paisagens e das áreas com melhor infra-estrutura urbana, mesmo que existam pobres no caminho para atrapalhar. Ou, nas palavras do já citado artigo de Jean-Pierre Garnier: “se há ‘reforma urbana’, ela visa antes ‘renovar’ a população local para que os moradores das zonas centrais dos grandes conglomerados urbanos possam exercer sua vocação: se impor como habitantes de ‘metrópoles’ dinâmicas e atrativas”[18]. Em sociedades etnicamente hierarquizadas, como a brasileira, isso também tem um sabor inconfundível de racismo.
Mas o racismo e o colonialismo raramente são afirmados abertamente, não há hoje (ainda?) condições para a enunciação pública de discursos como do nazismo ou da Ku Klux Klan. A ideologia oficial da segregação e da conquista dos melhores espaços chama-se atualmente “segurança”. Pode ser enunciada como “controle e combate à criminalidade” (o mais comum), “luta contra o terrorismo”, “prevenção contra riscos ambientais”, mas é sempre “segurança”, e portanto tem sempre um forte componente policial e militar. Os urbanistas ainda podem acreditar que estão traçando os destinos das cidades nas universidades e conferências, mas é nos quartéis que a política urbana está sendo cada vez mais definida.
A luta dos pobres urbanos, herdeira das lutas anti-coloniais e anti-imperialistas
A luta contra a ideologia da “segurança” e contra a violência estatal e paraestatal que a acompanha, é portanto a frente mais imediata de resistência contra o apartheid urbano. Essa luta assume a forma de defesa de direitos (direito à vida, à moradia, etc) porque “direitos humanos” se tornaram um grande obstáculo institucional (ainda que na maioria das vezes simplesmente formal) à ofensiva do capital contra os pobres urbanos. Nas condições atuais, a imposição dos interesses empresariais e da classe média na cidade implica em violações graves de direitos coletivos e individuais das populações pobres (o que, em partes do mundo como a Palestina ou as favelas brasileiras, assume as dimensões de genocídio), direitos reconhecidos e consagrados em inúmeras convenções, tratados e legislações internacionais. Uma campanha depreciativa dos “direitos humanos” como obstáculos à “segurança” tem conseqüentemente crescido nas últimas décadas, e é preciso ser firme e intransigente diante disso.
Mas, assim como resistência (defensiva) só tem futuro caso consiga se converter em contra-ataque (ofensiva), a luta por direitos tem que se converter em algo mais afirmativo. Aqui está a grande dificuldade. A forma ofensiva predominante (mas não única) da luta dos explorados das cidades nos últimos duzentos anos foi a luta de classe do proletariado assalariado permanente, através de organismos combativos no local de trabalho, conselhos de trabalhadores, sindicatos, partidos e internacionais. Essa forma, no fundo, sempre esteve restrita a uma parcela dos oprimidos que só foi homogênea e majoritária em alguns países por não mais que cento e cinqüenta anos, no melhor dos casos. Também nunca foi majoritariamente revolucionária[19]. Mas foi culturalmente dominante porque nasceu e se espalhou a partir do núcleo europeu original do capitalismo.
Toda esquerda que ainda se move dentro dessa tradição de origem européia fica perplexa e desorientada diante das dificuldades em construir uma política socialista tradicional nas lutas dos pobres urbanos atuais. Mas nem deveria, porque, pelo menos o marxismo, em sua crítica radical ao mundo do capital, permite compreender como as condições do capitalismo, das cidades e do proletariado urbano[20] mudaram muito nas últimas décadas. É uma esquerda que não conseguiu libertar o materialismo histórico de suas estreitas origens geográficas e históricas.
A maior parte dos pobres urbanos do mundo, que constroem e habitam os diferentes tipos de favelas, são descendentes dos povos colonizados: africanos, asiáticos, melanésios, polinésios, descendentes de ameríndios e escravos negros na América Latina. A maior parte do proletariado da Europa e das antigas colônias onde os “euro-descendentes” conseguiram ser maioria (Estados Unidos, Austrália, Canadá, etc), se livrou do destino favelado (pelo menos até hoje, é difícil afirmar o quanto isso vai durar) ao se converter em classe média pós-industrial ou aristocracia industrial. Mesmo nessa parte do mundo os favelados são etnicamente distintos: são imigrantes, ou descendentes de imigrantes ou “imigrantes forçados” (escravos e indígenas expropriados) da África, América original ou Ásia.
Entretanto, o mais importante ainda não é essa origem étnica, mas o fato, já apontado, de que os pobres urbanos de hoje sofrem uma opressão e ataques aproximadamente coloniais, bem pouco semelhante à opressão e exploração tradicional do trabalho pelo capital. O pobre urbano de hoje raramente se defronta com a figura do patrão capitalista que explora diretamente seu trabalho, mas sim com inimigos mais impessoais, ainda que evidentemente capitalistas: empreendedores imobiliários, indústria do turismo, conglomerados poluidores, máfias internacionais, Estados policiais militarizados, classe média ideologicamente submetida à burguesia. Correspondem, grosso modo às companhias de colonização, traficantes de escravos, Estados imperialistas e colonos europeus que em passado tão recente infernizaram a vida dos povos colonizados do mundo. Foi e é uma luta de classes, porém bastante diferente das formas que essa expressão normalmente evoca.
A resistência dos povos colonizados é mais antiga e pelo menos tão rica em tradições combativas, em comparação às lutas do proletariado urbano tradicional, industrial. Entretanto, as lutas e revoluções anti-coloniais e anti-imperialistas foram, até bem pouco tempo, esmagadoramente experiências rurais. Suas formas urbanas contemporâneas equivalentes estão nascendo diante dos nossos olhos, muitas vezes de forma confusa, caótica e “primitiva” (não num sentido “colonial-civilizador”, mas no mesmo sentido em que podemos chamar de “primitivas” as primeiras lutas – ludditas, cartistas, babovistas, etc – dos operários europeus nos séculos XVIII e XIX). Entretanto, o importante aqui é destacar a continuidade cultural, a identidade ancestral dos pobres das cidades. O proletariado favelado não é uma humanidade “desenraizada”, uma tabula rasa de valores e experiências (embora muitos, inclusive na esquerda, tentem vê-lo assim ou transformá-lo nisso), mas uma classe que tem atrás de si pelo menos cinco séculos de história combatente, com episódios épicos como os quilombos, as insurreições indígenas e escravas, a rebelião Taiping, o Grande Motim Indiano, as Revoluções Haitiana, Cubana, Argelina, Angolana, Chinesa e Indochinesa, entre outras, os levantes dos guetos negros dos EUA, etc.
Claro que é uma tradição com contradições, vitórias, derrotas, capitulações e deformações, porém nem mais nem menos que a tradição socialista de origem européia. Em ambas, o importante é reter o aspecto revolucionário, o anti-capitalismo radical (e qualquer anti-capitalismo para ser radical tem que ser anti-colonial e anti-imperialista), a perspectiva da emancipação da espécie humana do pesadelo do mercado mundial instalado no planeta há meio milênio. E acima de tudo compreendendo, como coloca com clareza Mike Davis, que “o futuro da solidariedade humana depende da recusa combativa dos novos pobres urbanos a aceitar a sua marginalidade terminal dentro do capitalismo global”[21].
Da defesa de direitos à exigência de reparação
A compreensão de que os pobres das cidades constituem uma população que sofreu no passado e continua a sofrer hoje uma espoliação de tipo colonial, permite a passagem da resistência defensiva (baseada na defesa de direitos violados) à resistência ofensiva, através da luta pela reparação coletiva das perdas passadas e presentes.
A reparação coletiva por danos causados em processos históricos de longa duração não tem lugar na lógica do capital ou do direito burguês, entre outras coisas porque permite a contestação da legitimidade do patrimônio acumulado pela classe dominante global e local. Mesmo iniciativas de reparação limitadas, com base exclusiva em origens étnicas (ou seja, sem considerar a situação econômica – pobreza – de seus possíveis beneficiados), e na prática “reparando” apenas uma parcela pequena dos descendentes dos povos colonizados, como são as cotas nas universidades e outras “políticas afirmativas”, têm gerado reações ferozes de setores dominantes, como estamos vendo na polêmica recente no Brasil.
Exigências de reparação mais fundamentadas no passado de espoliação imperialista, provocam reações ainda mais sinistras. O então presidente do Haiti, Jean-Bertrand Aristide, acossado por falta de recursos e ataques (inclusive armados) da oposição, anunciou, em abril de 2003, que exigiria da França, no segundo centenário da independência do país, o reembolso (devidamente reajustado e com juros razoáveis) da “indenização” que o Haiti teve que pagar à antiga metrópole entre 1825 e 1947, como condição para não ficar internacionalmente isolado. A República Francesa reagiu indignada, e o episódio foi a gota d’água para franceses, norte-americanos e canadenses invadissem a terra de l’Ouverture e Dessalines em fevereiro de 2004[22]. A proposta de Aristide, exilado na África, caiu no “esquecimento”, e os novos governantes, sob ocupação militar da ONU, nem tocam nela, mesmo após o terrível sismo de 12 de janeiro de 2010.
Destino ainda mais violento que o de Aristide teve Thomas Sankara, jovem governante revolucionário do Burkina Faso (África Ocidental) nos anos oitenta do século passado, que muito desagradava as elites pós-coloniais africanas com sua luta radical contra a corrupção, por igualdade social e pela emancipação da mulher. Mas o que selou sua sorte foi sua exortação pública para que os países africanos não pagassem suas dívidas externas, que para ele eram ilegítimas e condenavam a África à fome. Em julho de 1987, num discurso hoje já famoso, na reunião de cúpula da Organização da Unidade Africana (OUA) em Addis Abeba[23] denunciou mais uma vez a dívida como conseqüência e continuação do colonialismo e declarou que o Burkina Faso não pagaria um centavo da sua enquanto houvesse fome no continente. Três meses depois foi deposto e assassinado num sangrento golpe de estado comandado por um ex-amigo e companheiro, Blaise Campaoré (presidente-tirano até hoje), e com participação comprovada da França, EUA e países africanos[24]. Creio que não é preciso fornecer mais evidências do caráter anti-capitalista da exigência de reparação, mas os casos citados mostram como essa luta precisa ser encampada por uma amplo movimento popular de base e internacional, para resistir às inevitáveis retaliações.
Na luta dos pobres urbanos a reparação não é somente uma bandeira para se incluir em pautas de reivindicações genéricas, mas uma concepção central ou mesmo uma “ideologia” que permite inclusive a legitimação de práticas “ilegais” de resistência econômica cotidianamente efetivadas, como a ocupação de terrenos e prédios (mesmo particulares), ligações clandestinas de água e eletricidade, estabelecimento de pequeno comércio não regularizado, etc. Na África do Sul, onde os métodos e os efeitos da espoliação colonial são mais evidentes e recentes, existe um forte movimento de base pelo não pagamento das tarifas de energia e água pelos negros, inclusive com brigadas organizadas que ensinam a fazer ligações clandestinas seguras, e com um discurso explícito de reparação. O movimento, vejam bem, surgiu após o fim do apartheid, quando os sucessivos governos de maioria negra, mas submetidos ao ideário mercantil-capitalista, buscaram agressivamente a “regularização”do fornecimento e da cobrança de serviços urbanos nas grandes favelas[25].
Uma prova de como o ambientalismo e o urbanismo “puros”, mesmo em sua variante “pós-moderna”, submete-se ao mundo do mercado capitalista e passa ao largo das lutas de classes, é o trecho do artigo de Brand onde lamenta que nem sempre as favelas são eficientes, citando as do Brasil “onde a eletricidade é roubada e portanto grátis, e as pessoas deixam as luzes acesas durante todo o dia”[26]. Mesmo sem questionar a validade dessa última afirmação, aparece aqui a concepção que a imposição de custos mercantis é a única forma de se obter uso racional da energia. Talvez isso seja verdade para as empresas, que se guiam por cálculos financeiros, então a coisa mais importante seria acabar de vez com a energia subsidiada que é fornecida na maior parte dos países às grandes indústrias e prédios comerciais e de escritório[27]. Neste caso, reparação e ambientalismo podem ser facilmente conciliados, com cobrança de taxas puramente simbólicas para os pobres, que só aumentariam no caso do uso acima de determinadas faixas de consumo domiciliar, e o custo seria coberto integralmente por tarifas bem mais altas sobre as empresas e os domicílios de alta renda. O que não dá para conciliar são os diferentes interesses de classe…
Pós-modernismo e favelas
A visão aberta e generosa de Brand diante da realidade e das realizações dos moradores das favelas, não deixa de ser algo bem-vindo diante do preconceito agressivo do urbanismo “moderno” tradicional, ou do elitismo e insensibilidade social do ambientalismo mais corriqueiro. É uma atitude que com certeza conflita com a contínua depreciação dos favelados como “bárbaros”, grosseiros ou incapazes, tão necessária para a manutenção dos ataques e da espoliação colonial contra os pobres urbanos, muitas vezes apresentadas sob a forma de um paternalismo benevolente (como também era feito, aliás, durante o colonialismo clássico).
Entretanto, creio que mostrei de forma suficiente como um urbanismo “pós-moderno”, caso oriente-se pelos postulados no “Novo Urbanismo” norte-americano e tendências semelhantes, permanece tão limitado às relações capitalistas como as escolas “modernas”, e por isso não fornece as verdadeiras diretrizes para uma emancipação da pobreza urbana, e assim para a superação da crescente crise urbana, social e ambiental global[28].
A continuidade da miopia de classe e eurocêntrica aparece com clareza no seguinte trecho no final do artigo de Brand: “as cidades em rápido crescimento estão longe de ser um bem absoluto. Elas concentram crime, poluição, doença e injustiça tanto quanto negócios, inovação, educação e entretenimento […] Mas se, de modo geral, elas são uma boa rede para quem mora nelas, é porque as cidades oferecem mais do que apenas empregos. Elas são transformadoras: nas favelas, assim como nos prédios de escritórios e subúrbios arborizados, o progresso vai do provinciano para o metropolitano e para o cosmopolitano, e com essa transformação advém tudo o que o dicionário define como cosmopolitano: multicultural, multirracial, global, mundial, viajado, experiente, cultivado, aculturado, sofisticado, agradável, urbano”[29].
Isso é perfeitamente uma repetição, com algumas variações, do velho discurso modernista segundo o qual o sofrimento humano e as catástrofes ambientais (que continuam mesmo após 500 anos!) produzidas pelo colonialismo e o capitalismo justificam-se porque no final de contas produzem… modernidade! E além de tudo não está de acordo com as evidências empíricas: as cidades do capital atualmente não “oferecem” nem mesmo empregos, e a segregação e a disputa por espaço resultantes levam, não a um “multiculturalismo e multirracialismo”, mas a conflitos culturais (inclusive religiosos) e raciais crescentes.
Isso tudo não deveria ser novidade para quem participa de lutas e dos movimentos sociais, mas infelizmente ainda é forte a expectativa de que modelos, teorias e “políticas públicas” concebidas por “especialistas” tragam verdadeiras soluções para tanto descalabro e sofrimento no mundo. A questão, é preciso insistir, não está na qualidade das propostas dos “especialistas”, mas no fato de as contradições do capitalismo serem tão irreconciliáveis que contaminam inevitavelmente qualquer teoria desligada das lutas vitais dos explorados e oprimidos. O único “urbanismo” viável será construído pela resistência, levantes, rebeliões e revoluções dos pobres das cidade e do campo, em primeiro lugar a imensa humanidade descendente dos povos colonizados pelo capital.
Maurício Campos
Março de 2010
[1] O Original em inglês pode ser acessado aqui: http://www.prospectmagazine.co.uk/2010/01/how-slums-can-save-the-planet. Uma tradução parcial para o português está disponível no site de notícias do UOL (http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/prospect/2010/02/22/como-as-favelas-podem-salvar-o-planeta.jhtm, acessível para assinantes).
[2] A “Carta do Novo Urbanismo”, aprovado num encontro em 1996, pode ser lida num artigo sobre a corrente (ftp://ftp.usjt.br/pub/revint/11_48.pdf).
[3] Em Favelas do Rio de Janeiro: Entre a possibilidade do Poder Popular e o Cerco da Opressão (Dezembro de 2000). Esse texto, que não chamo de ensaio porque desde o início foi antes de tudo um documento político visando contribuir para uma estratégia de atuação popular militante em favelas e periferias, circulou em cópias e publicações do movimento social, e ainda se encontra em alguns lugares na Internet. O último site que o publicou foi o Uni-vos (http://www.uni-vos.com/brasil1.html).
[4] O trecho de meu texto que citei continua assim : “As obras públicas nas favelas são quase sempre remendos: contenções onde encostas já deslizaram e mataram gente; canalizações de rios e valas que já transbordaram e mataram muitas vezes; saneamento onde o esgoto corre a céu aberto há anos; redes de luz e água onde os “gatos” e as ligações clandestinas há muito tempo já resolveram o problema mais urgente; áreas de lazer e praças em terrenos há muito utilizados pelos jovens e crianças nas suas brincadeiras e esportes improvisados. As únicas obras de porte para as quais o povo geralmente não tem alternativa própria são precisamente as que mais fazem falta e nas quais menos se investe: pavimentação, construção de escolas, creches e postos de saúde”.
[5] Mike Davis faz um resumo do uso oportunista da defesa da “auto-construção”, por governos, agências internacionais e ONGs, no capítulo de seu Planeta Favela intitulado “As ilusões do construa-você-mesmo” (Boitempo Editorial, 2006)
[6] Recentemente concedi uma entrevista ao jornal da Federação dos Sindicatos de Engenheiros (Fisenge), da qual apenas uma pequena parte foi publicada, e na qual disse, sobre a “reforma urbana”: “no aspecto habitacional, uma reforma urbana digna desse nome nunca deveria ser a oferta de imóveis construídos de tal forma que não possam ser melhorados e ampliados pelas famílias que os ocupem. Eu conheço as casas de Nova Sepetiba [conjunto habitacional construído há uns sete anos na Zona Oeste do Rio], e mesmo como engenheiro digo que aquilo é um atentado contra a dignidade humana. Os terrenos são minúsculos, logo as casas só poderiam ser ampliadas com a construção de novos pavimentos, mas isso é impossível porque as casas não têm estrutura, ou seja, não têm colunas e vigas que permitam subir mais um pavimento. Penso que o engenheiro ou arquiteto que se presta a fazer e construir um projeto como esse para o Estado é tão perverso como os governantes que idealizam esse tipo de monstrengo habitacional”.
[7] No Rio de Janeiro, as favelas densas são em boa parte uma substituição dos antigos cortiços, contra os quais a classe dominante travou uma batalha de extermínio no final do século XIX e início do século XX. Os cortiços nunca foram “auto-construídos” por seus moradores, mas realizavam em parte a estratégia de se estar próximo das oportunidades de trabalho, infra-estrutura e convivência cultural, propiciadas pelas áreas centrais. Hoje em dia, as ocupações de sem-teto realizadas em prédios abandonados nas áreas centrais das cidades que sofreram processos de decadência, significam uma certa retomada, porém com mais autonomia, da experiência dos cortiços. As ocupações mais organizadas, é claro, procuram explicitamente evitar os fenômenos de subdivisão, sublocação e exploração de aluguéis que tornaram tão tristemente célebres os antigos cortiços.
[8] Assim como vários movimentos sociais urbanos teorizam e justificam a ocupação popular próxima a áreas centrais, outros movimentos (não por acaso oriundos de movimentos rurais como o MST) teorizam e justificam ocupações mais afastadas propondo um modelo rururbano de assentamento (ver, por exemplo, http://mtst.linefeed.org/rururbano.htm e também http://www.sober.org.br/palestra/2/439.pdf).
[9] Temos que reconhecer que há razões de sobra para urbanistas reagirem contra o modelo de subúrbios de classe média que se generalizaram nas cidades dos EUA após a Segunda Guerra Mundial. Pequenas mansões para famílias de quatro ou menos pessoas, gramados tão imensos quanto inúteis, desproporcional gasto de energia para iluminar ou aquecer áreas tão grandes, inexistência de espaços públicos, distâncias que só podem ser cobertas de automóvel, tudo é de fato uma grande ostentação muito longe da idéia de aproveitar as vantagens das áreas “peri-urbanas” das cidades.
[10] Para estatísticas de população, densidade populacional e área do planeta: http://unstats.un.org/unsd/demographic/products/dyb/dyb2007/Table01.pdf
[11] Na “Carta do Novo Urbanismo” norte-americano a principal referência ao campo chega a ser infantil: “A metro?pole tem uma necessa?ria e fra?gil relac?a?o com a a?rea rural e a paisagem natural. A relac?a?o e? ambiental, econo?mica, e cultural. As terras agri?colas e a natureza esta?o para a metro?pole assim como o jardim esta? para a casa.” (ver link na nota 2). Lefebvre, que não tinha também uma visão tão compreensiva da relação cidade-campo como os socialistas do início da Revolução Industrial, pelo menos conseguiu intuir uma crítica dessa visão “recreativa” do campo como mais um aspecto da submissão capitalista do rural ao urbano: “Estranhamente, o direito a? natureza (ao campo e a? “natureza pura”) faz parte dos ha?bitos sociais ha? ja? alguns anos grac?as ao lazer. Fez o seu percurso atrave?s do vitupe?rio que se tornou banal contra o barulho, a fadiga e o universo “concentraciona?rio” das cidades (quando a cidade apodrece ou explode). Percurso estranho, dizemos no?s: a natureza aparece no valor de troca e de mercado; compra-se e vende-se. O lazer comercializado, industrializado, organizado institucionalmente, destro?i esta “naturalidade” de que nos apropriamos para poder negocia?-la. A “natureza”, ou aquilo que e? pretensamente apresentado como tal, o que dela subsiste, torna-se o gueto do lazer, o lugar da fruic?a?o, o refu?gio da “criatividade”. (O Direito à Cidade, Centauro, 2008).
[12] Outro exemplo citado por Brand em seu artigo mostra como é possível aliar atividade “verde”com combate à pobreza: “a nacionalmente subsidiada cidade de Manaus, no norte do Brasil, ‘responde à questão’ de como parar com desflorestamento: dando empregos decentes às pessoas. Assim elas poderão conseguir moradia e segurança econômica. Cem mil pessoas que de outra maneira estariam devastando a floresta em torno de Manaus estão agora prosperando na cidade na fabricação de, por exemplo, celulares e televisores” (traduzido do original, este trecho não foi incluído na tradução citada na nota 1; claro que é um exagero dizer que os trabalhadores da Zona Franca são “prósperos”; além disso habitantes da Amazônia, como indígenas, seringueiros e castanheiros, quando lhes é permitido, sabem muito bem viver na floresta sem devastá-la; mas o raciocínio geral é correto).
[13] “Walkability” (“andabilidade”) é um conceito central criado pelo arquiteto e urbanista Peter Calthorpe, um dos fundadores do “Novo Urbanismo”
[14] Dessa forma satisfazendo outro princípio do “Novo Urbanismo”: o uso misto do espaço.
[15] Planeta Favela, Boitempo, 2006.
[16] Insisti nesse ponto em minha intervenção na mesa “Violência nas periferias urbanas e ameaça à democracia”, no Fórum Social Mundial Temático que aconteceu no final de janeiro desse ano em Salvador (BA). Ver, por exemplo, a reportagem sobre o debate feita por Bia Barbosa para a Agência Carta Maior (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16379) ou a notícia da Agência Brasil sobre o mesmo (http://noticias.terra.com.br/brasil/forumsocialmundial/2010/noticias/0,,OI4237918-EI14700,00-Especialistas+falta+de+acoes+nas+periferias+causa+violencia.html).
[17] A luta por espaço, em Le Monde Diplomatique Brasil, ano 3 número 32 (Março/2010).
[18] Idem.
[19] “O Ocidente tentou ser uma aventura do Espírito. E em nome do Espírito, do espírito europeu evidentemente, a Europa tem justificado seus crimes e legitimado a escravidão em que mantém quatro quintas partes da humanidade [….] Tem existido europeus, contudo, que têm chamado os trabalhadores europeus a romper com esse narcisismo e romper com esse irrealismo. Em geral, os trabalhadores europeus não responderam a esses chamados. Porque os trabalhadores europeus também acreditaram ser participantes da aventura prodigiosa do Espírito europeu.” Fanon, Los Condenados de La Tierra (Fondo de Cultura Económica, México, 1986).
[20] Proletariado é aqui entendido como a classe formada pelas pessoas que não têm nada além de sua força de trabalho para tentar obter uma renda regular. O proletariado que quase nunca consegue obter essa renda de forma regular pode ser chamado de trabalhador precário, trabalhador desempregado/subempregado, etc, mas eu prefiro chamar de proletariado não-reprodutível, porque sua reprodução (como proletário) não está assegurada pela reprodução do capital. Não cabe aqui discorrer muito sobre isso, abordei essa questão conceitual com mais detalhe em minha intervenção no seminário “Perspectivas de Reorganização da Classe Trabalhadora”, organizado pela Aduff/Ssind e Secretaria Regional do ANDES-SN/RJ em dezembro de 2006; a transcrição de minha intervenção foi publicada na revista sobre o seminário distribuída em Fevereiro de 2007 pela Aduff. Segue um trecho: “Vou caracterizar proletariado ou classe explorada como aquela parcela da sociedade que só pode contar com sua força de trabalho para sobreviver. Que não tem nenhum tipo de controle ou domínio sobre meios de produção ou monetários que lhe permita algum tipo de rendimento ou de retorno produtivo constante que não seja a sua força de trabalho. Faço, porém, uma observação. Contar apenas com sua força de trabalho para sobreviver não quer dizer necessariamente que ele consegue empregar essa força de trabalho e ser explorado por alguém para sobreviver. É uma diferença muito grande […] Gostaria de trabalhar em cima da possibilidade de reprodução do explorado. […] Preferia falar daquele proletariado reprodutível, aquele que tem certeza que, após um ciclo de acumulação do capital estará, no final desse ciclo, na mesma situação em que já estava antes, ou seja, sem meios de produção, recebeu e consumiu seu salário e está em condições de ser explorado no novo ciclo de acumulação e tem certeza que será explorado nesse novo ciclo de acumulação. […] e temos ainda o proletariado não-reprodutível, aquele que não tem certeza que vai conseguir se reproduzir como trabalhador. Depois de um ciclo de acumulação de capital, ele não tem certeza se vai conseguir se reproduzir como trabalhador, não tem certeza do que vai acontecer com ele. Se estará desempregado ou se conseguirá trabalhar novamente. Este é um setor que está crescendo cada vez mais”.
[21] Planeta Favela, Boitempo, 2006.
[22] Ver, por exemplo, a descrição e análise dos fatos no artigo de Peter Hallward publicado na New Left Review, e, traduzido, na coletânea Contragolpes (“Opção zero no Haiti”, Contragolpes, Boitempo Editorial, 2006).
[23] Ver, por exemplo, em http://www.thomsank.com/videos; um trecho do discurso, em espanhol, pode ser consultado em http://books.google.com.br/books?id=brtXC-3VbuYC&pg=PA235&lpg=PA235&dq=discurso+sankara+addis+abeba&source=bl&ots=FCp4lFRA-L&sig=aGT6JhDnp7BQTS8zgAKJy_5zOp4&hl=pt-BR&ei=mnufS9H-KIOKuAfE98nLDQ&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=10&ved=0CC0Q6AEwCTgK#v=onepage&q=discurso%20sankara%20addis%20abeba&f=false.
[24] Conferir notícia recente sobre o caso em http://www.libreidee.org/pt/2010/01/giustizia-per-sankara-lultima-speranza-dellafrica; a experiência simbolizada por Sankara no Burkina Faso foi objeto de ensaio de Jean Ziegler (incluído em A Vitória dos Vencidos, Forense Universitária, 1996).
[25] Confiram, por exemplo, “Água e política na África do Sul pós-apartheid”, em http://www.citizen.org/print_article.cfm?ID=8896.
[26] Ver referência na nota 1; também este trecho não consta da tradução para o português, talvez porque o tradutor saiba que há poucos fundamentos nessa afirmação de que as luzes são mantidas permanentemente ligadas nas favelas…
[27] Sem falar do fato, frequentemente divulgado pela imprensa brasileira, de que o roubo de energia praticado por grandes consumidores (empresas e residências ricas) tem impacto maior que as ligações clandestinas dos pobres.
[28] Um sintoma que deveria fazer os “novos urbanistas” refletirem é o quanto suas propostas anti-automobilísticas para o planejamento de cidade “andáveis” têm sido amplamente ignoradas. O problema não está, é claro, na justeza de seus argumentos, mas no imenso poder da indústria automobilística na economia global.
[29] Ver nota 1.