Por Fatima Lacerda*
O assustador número de mortes que não para de crescer em Niterói, uma das cidades até então consideradas de melhor qualidade de vida no Estado do Rio de Janeiro, obriga a uma reflexão sobre a imagem que os governantes tentam passar do município e a dura realidade das áreas periféricas, favelas e bairros da zona norte.
Por parte das autoridades, daqueles que deveriam implementar e propor soluções, até agora se ouviram apenas respostas prontas e evasivas. São declarações que, inevitavelmente, responsabilizam os pobres pela tragédia que já contabilizou centena e meia de mortos e a cada hora que passa, o número aumenta.
“Quem mandou morar em área de risco?” – é a resposta mais comum e previsível. Ora, ninguém espera que um prefeito ou governador tenha poderes de super-herói. Que resolva as mazelas do adensamento das cidades e da falta de estrutura urbana com varinha de condão. Não se trata disso. Mas que, pelo
menos, lance um olhar para a pobreza, elabore projetos de contenção de encostas, melhore a limpeza e o recolhimento de lixo nessas áreas, discuta a construção de casas populares e desenvolva propostas de urbanização.
No caso de Niterói, lugar onde vivo há 35 anos, onde nasceram e foram criados meus filhos e neta, posso afirmar com pesar, mas sem risco de cometer injustiça: as chuvas derrubaram os muros que separam as áreas nobres dos morros, sempre escondidos, camuflados, completamente ignorados pelas
políticas públicas.
Quem vive na Zona Sul de Niterói tem dificuldade de enxergar as favelas. Costumam ficar encobertas por muros, por árvores. A impressão que se tem e o "marketing" que se vende da cidade é de que Niterói é uma região de classe média e classe média alta, de pessoas brancas, muitas de sobrenome empolado, descendentes de europeus, com razoável poder aquisitivo e bom nível de instrução. A maioria dos niteroienses gosta de acreditar nessa farsa.
Mas basta chegar ao centro da cidade. Já no terminal de ônibus o asfalto está cheio de buracos, enquanto a Praia de Icaraí está sempre impecável. A iluminação, na Zona Sul, está ótima. Os jardins foram renovados. No entanto, a tragédia que deixou à mostra as vísceras da cidade, que se orgulhava em alardear sua alta qualidade de vida, dispensa palavras.
Não é preciso dizer que existem regiões completamente esquecidas, há anos, onde as reivindicações dos moradores ficam nas gavetas, como já afirmaram os representantes da Associação de Moradores do Morro do Estado que, nesta quinta, em meio à comoção geral, realiza uma assembléia para tocar nessa
dolorosa ferida.
Diz-se que Niterói tem um bom programa de saúde nas comunidades, sendo pioneira na adoção do “médico de família”, inspirado na experiência cubana. Vá lá. Não é hora de avaliar criticamente a quantas anda o “médico de família”. Mas por que não copiar outras políticas públicas de Cuba? O país
tem sido vítima de grandes tragédias naturais nos últimos anos, mas se orgulha de ter um programa preventivo que tem evitado milhares de mortes. Apesar do bloqueio econômico – o maior de todos os desastres – o recorde de mortes por tragédias desse tipo em Cuba foi registrado em 2005, quando 16
pessoas perderam a vida, na passagem do furacão Dennis.
Nesse sentido, no contexto da região metropolitana do Rio, o município de Niterói está mais para o Haiti do que para Cuba. No Haiti, recentemente, morreram 200 mil pessoas, naquele que foi considerado o mais trágico desastre já enfrentado pela ONU, em 60 anos de existência. Maior que o
tsunami na Ásia, em 2004. O terremoto do Haiti, na escala Ritcher, foi menor que o do Chile. Mas o número de mortos foi infinitamente maior.
Então, não são apenas as forças da natureza. Esta não é uma tragédia sem culpados. Hoje eu estou com vergonha da minha cidade. Do desgoverno da minha cidade. Da invisibilidade a que têm sido relegados os mais pobres e os bairros periféricos. A chuva derrubou os muros. Descobrimos que o Haiti também é aqui. E agora, Sr. Prefeito?
* Jornalista da Agência Petroleira de Notícias.