CRÔNICA | Noite de Natal

Entre a oração dos aflitos e dos fortunados - Foto: Banco de Imagem PxHere

A Família Grostein chegou ao Brasil em meados dos anos trinta do século passado. Assim que pisaram no Rio, assustaram-se com o clima tropical, depois, com a moleza no corpo gerada do calor e a ausência de inverno durante o ano. Aliviados, porém, da grande revolução, que desesperados fugiram. Nos braços da mãe, bem moça, havia uma criança muito gorda e muito assustada, que berrava ao nascer do novo país.

Esse bebê, assoberbado de mimos, cresceu certo de que, naturalmente, os bens da família, caso não fossem transportados às pressas de navio da cidade natal de Ekaterinoslav, atual Dnipro, Ucrânia, os rebeldes derreteriam as joias da mãe, conservadas na família a gerações e as barras de ouro do pai, urgentemente retiradas do banco. Despojariam o dinheiro não declarado no cofre, somente revelado naquele momento, escondido atrás de um quadro de Michelangelo. Temia que esse viesse se tornar fogueira em praça pública, para esquentar as sopas e os corpos de toda gente incivilizada e faminta que por ali, protestava justiça.

Já com noventa e dois anos, Seu Grostein, conhecido homem de finanças, sentava-se à grande mesa de jantar. Orgulhoso patriarca, viu sua descendência chegar a quinta geração. Os tempos eram outros, adaptaram-se aos costumes, apesar de não cristãos, reuniam-se diante da simbólica noite de Natal, idêntico a muitos brasileiros.

Antes da ceia, com cara fechada, agradecia a dádiva de sua posição, a fortuna que o cercava, os sorrisos frouxos e seguros dos bisnetinhos loiros e asseados. Sem esquecer dos mares nas Bahamas, onde festejaria o Réveillon. E, claro, quanto ganharia economizando com a força de trabalho que tinha em seu comando. Apesar da idade, seus sócios, os filhos, confiavam cegamente na habilidade inovadora do pai.

Do início do ano àquela noite, a família Grostein havia, nada menos, que triplicado suas posses. As indústrias haviam se internacionalizado, parte disso enviado a bancos suíços, naturalmente. Investido em ações e ganhado muito nas bancas do cassino, das bolsas de valores. Agradavelmente revisitava a memória.

Pouco antes do carnaval demitira quase vinte por cento dos funcionários e lucrara com isso. Aproveitou-se das dificuldades no mercado. Justificou, declarou e agora dava um leve sorriso, enquanto se deslumbrava com sua agilidade em ler as entrelinhas da economia global. Propositadamente, junto a outros, fizera uma massa de trabalhadores perambular pelas ruas desempregados. Isso só supervalorizava a admissão. E, sujeitava aos que ficaram, a uma nova submissão.

Essa gente desgovernada pedindo clemência, favorecia seus negócios e não entendiam isso. E, um exército de reserva de mão-de-obra se tornava barato. Por que o velho gostava mesmo de pagar menos pelas mesmas horas executadas de batente.

Recordara com carinho as capas de jornais, revistas, sites de notícias especializadas que o colocava como grande empresário, por iniciar, dois meses depois, uma onda jamais vista de contratações. Por menos da metade do salário. Com menos direitos trabalhistas diante do caos, não havia órgãos constitucionais que o acusasse de exploração. Assim, a imagem da mesa dos pobres tendo finalmente feijão e arroz, tornara-se indispensável a boa reportagem corporativa.

Frente ao prato, no entanto, com todos a sua roda, Seu Grostein ao lado da cadeira vazia da falecida esposa, teve dentro de si a necessidade de uma espécie de fé. Um ardor que só os angustiados tem. Enquanto, distante dali, no bairro de Guadalupe, um homem assemelhava-se, naquele instante, de um mesmo sentimento comum. Ora, o homem era justo um ex-funcionário seu.

Quando, o ancião interrompeu a farra da comida, da abertura de presentes sob a árvore ornamentada, de vinhos importados e champanhes, exigindo, o que muitos consideraram uma prática exótica para a família, rezar. Na escrivaninha, abriu gavetas, retirou a cruz, ajoelhou-se, fechou os olhos. Com o mesmo fervor devocional da sua vítima de Guadalupe.

Calados em respeito o copiaram, as pálpebras se encontravam. Intimamente não compreendiam por que o vovô, estreitava entre as mãos, com firmeza, aquele esfarrapado homem pregado.

E, no outro lado da cidade, coincidentemente, havia um homem esfarrapado assim. Ingênuo talvez, porém decente. Em prece pediu o bem estar de sua família, até do patrão, na esperança do serviço retornar.

Contudo, tenho pra mim, que o velho Grostein rezou e apenas rezou em uma noite de natal, duas horas antes de capotar, desejando, atormentado frente à morte, não ser tragado pelo lodo do inferno.

Leia mais: CRÔNICA | Os urubus