Mal começou o ano e o carioca já relembra como é viver em uma cidade governada por Eduardo Paes. Em duas semanas de mandato, profissionais da Colônia Juliano Moreira, na Zona Oeste do Rio, ainda estavam sem os salários de dezembro e o CAPS Dircinha Batista, em Guadalupe, está funcionando há dias sem água.
Outra recordação recente da gestão Paes foi a exoneração do então superintendente de Saúde Mental, o psiquiatra Hugo Fagundes, para nomeação de Gabriel Bronstein Landsberg, psiquiatra e diretor de uma clínica privada da Zona Sul, especializada em dependência química. Considerando que isso representa uma reorientação do modelo de atenção praticado nos últimos anos, apontando para uma lógica diferente do fortalecimento do SUS e do atendimento humanizado, te convido a resgatar alguns acontecimentos na política de saúde mental, álcool e drogas do município para.
Os últimos dez anos foram marcados por contradições que evidenciam algo que é sempre importante ter em mente quando se disputa um projeto político, principalmente se for comprometido com a transformação social: os fazedores de política, o contexto político e a própria política. Digo isso lembrando Norman Zinberg, que propõe o olhar através da tríade do sujeito, substância e contexto para os estudos sobre drogas.
Esse mínimo de três elementos possibilita uma série de arranjos institucionais. Exemplo disso é o fato de que ações de redução de danos, como o programa “Bike da Prevenção”, coexistiram com o incentivo às comunidades terapêuticas. No Rio de Janeiro isso é possível, em partes, porque a questão da saúde mental, álcool e outras drogas tem sido gerida de forma parcial e não multidisciplinar. O que significa dizer, na minha avaliação, que há uma margem entre a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e a Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos (SMASDH) que é regulada a partir dos interesses que estão em jogo no momento. Ou, como pergunta Spinoza: “já houve alguma instituição tão sábia da qual não pudesse nascer qualquer inconveniente?”.
Ações voltadas à saúde mental no Rio de Janeiro
Segundo o ex superintendente de Saúde Mental da cidade do Rio de Janeiro, Hugo Fagundes, nos 15 anos que passou na superintendência, viu a cidade adotar cada vez mais o modelo territorial de cuidado ao invés do institucionalizado. “Hoje temos 503 pessoas morando nas Residências Terapêuticas, sendo 94 na cidade. Temos 34 Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e 13 deles funcionam 24h e sete dias por semana”, comenta.
Para além da desinstitucionalização da saúde mental, Fagundes afirma também que os esforços foram grandes para fazer com que essa área fosse cada vez mais administrada pelo Estado, ao invés do setor privado. “Temos uma experiência exitosa. Fechamos três hospitais privados e hoje temos três hospitais públicos que já foram macro hospitais: a Colônia Juliano Moreira, com 126 pacientes; o Pinel com 60; o Nise da Silveira com 26; e o Manfredini com 40”, completa o psiquiatra.
Enquanto isso, para sediar a Copa do Mundo (2014) e as Olimpíadas (2016), a cidade-espetáculo dramatizou ações higienistas na forma de remoções e de internações involuntárias de pessoas que estavam em situação de vulnerabilidade e que acabaram sendo identificadas como “pessoas em situação de rua e usuárias de drogas”. Assim, elas se encaixaram no perfil do Plano Nacional de Enfrentamento ao Crack, a partir da justificativa de uma epidemia sem comprovações científicas.
Política de enfrentamento às drogas no Rio de Janeiro
A relação entre o crack e a rua pode parecer óbvia para moradores de grandes cidades, mas vamos pensar: será que necessariamente quem está na rua usa drogas? Essa droga é o crack? Este é o principal problema a ser enfrentado? E como uma política pública comprometida com a melhoria da vida em comum poderia solucionar esta questão?
Olhando para essa história recente, a SMASDH entendeu que sim, que quem está na rua precisa ser retirado de lá, que o principal problema das pessoas em situação de vulnerabilidade era o consumo de crack e que a solução era encaminhá-los para alguns abrigos da cidade. O então secretário da pasta, Rodrigo Bethlem, contou com o apoio do Ministério Público Estadual e da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente para implementar as ações, que foram alvo de fiscalização do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura.
Em 2012 foi produzido um relatório que constatou a falta de assistência aos abrigados, como: dificuldade de acesso ao local; medicalização generalizada; déficit de profissionais e precariedade nas condições de trabalho. Além disso, foram também identificadas violações de direitos humanos como o isolamento de crianças e adolescentes.
“O debate sobre a política de drogas no Brasil é muito difícil. A gente tem a influência de um discurso moralizante que sustenta a ideia de que o tratamento precisa alcançar absoluta abstinência, que demoniza a droga, desconsidera o sujeito e a sua história, seu contexto e suas condições de vida. A pessoa é reduzida a uma dependência química, como se fosse alguma coisa do super homem com a kriptonita. Essa é uma visão muito simplista, muito frágil”, explica Fagundes.
Outro importante documento deste período foi o Dossiê do Comitê Popular sobre a Copa e as Olimpíadas do Rio de Janeiro, onde concluiu que a suposta “guerra às drogas”, de cunho proibicionista, manicomial e higienista, é apenas um nome escuso para uma guerra aos pobres. O Dossiê ainda apontou que na época existia uma insuficiência de CAPS especializados em Álcool e Drogas na cidade e que as verbas públicas disponíveis deveriam ser aplicadas também em equipes da Estratégia de Saúde da Família; consultórios na rua e núcleos de apoio à saúde da família. Além disso, rede de serviços da assistência social, para além dos abrigos, como os Centros de Referência Especializados da Assistência Social (CREAS) e os Centro Pop, deveriam ser ampliados.
O Plano Nacional de Enfrentamento ao Crack financiou essas ações, mas não havia transparência na execução financeira e não eram vistos resultados concretos do investimento federal. Diante disso e das denúncias já citadas, em 2013 foi protocolado na Câmara dos Vereadores um pedido de instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Internação Compulsória, que não ocorreu.
“O principal desafio é construir uma sociedade respeitosa, que cuide das pessoas em liberdade e que entenda que qualquer forma de vida vale a pena. Se a pessoa está em situação de rua, é usuária de drogas, essa pessoa precisa ser valorizada porque ela é importante nesse processo. A perspectiva de trabalho tem que estar calcada na redução de danos, enquanto isso não for percebido vamos sempre gastar energia, dinheiro, e ter um resultado muito pífio”, comenta Hugo.
Evolução da política de saúde mental no Rio de Janeiro
Na gestão de Marcelo Crivella, destacamos o programa “Um Novo Caminho” e o programa “Resgate Solidário”. No meio do mandato a prefeitura do Rio de Janeiro realizou a “1ª Semana Rio sem Drogas”, organizada pela Coordenadoria de Política Antidrogas da SMASDH. O órgão foi criado em 2018 sob o argumento da necessidade de convênios e acordos para a aplicabilidade da Política Nacional sobre Drogas, sendo liderada por Douglas Marques Correa, presidente e proprietário do Instituto Manassés, que reúne 27 comunidades terapêuticas pelo país.
O objetivo principal do evento foi lançar o programa “Um Novo Caminho”, que através dos eixos: prevenção, reinserção social e recuperação, não só possibilita o acesso às comunidades terapêuticas como também facilita seu credenciamento na vigilância sanitária e direciona o financiamento público a este modelo de tratamento.
Em 2019, Crivella se reuniu com Osmar Terra, então ministro da Cidadania, e retomou o que Eduardo Paes começou: a internação compulsória, agora referenciada na recém aprovada Lei 13.840/19 e pelo Decreto Municipal nº 46.314. Em entrevista, Terra justificou a escolha do Rio de Janeiro considerando uma outra epidemia, desta vez, de violência. E o bispo disse que não se tratava de internar todos que estão na rua, mas apenas aqueles “que perderam o controle de si. Que oferecem a si mesmas e a outras riscos. Essas pessoas precisam ser submetidas a um exame médico. E o médico vai nos dizer o que fazer com elas”.
A associação entre a situação de rua e o consumo de drogas é, portanto, uma continuidade entre as gestões de “Paes I” e Crivella. E o exemplo mais recente disso foi a implantação do programa “Resgate Solidário”, também em 2019. Dessa vez, tratava-se de uma articulação entre a SMS e Coordenadoria Municipal de Políticas Sobre Drogas, com apoio de agentes da Guarda Municipal, Comlurb, Superintendência da Zona Sul, Rio+Seguro e Ordem Pública.
A importância da defesa do SUS
No contexto da pandemia da Covid-19, a SMASDH encaminhou uma fração da população em situação de rua para o Sambódromo, na lógica de ficarem abrigados durante o isolamento social. Vieram as eleições de 2020 e os dois principais candidatos mostraram suas diferenças, incluindo aquelas referentes à política de drogas. A campanha de Marcelo Crivella divulgou fake news sobre Paes, acusando-o de ser a favor da “liberação de drogas”.
No entanto, nos programas de governo de ambos não são abordados pontos sobre o tema. Coube a outros candidatos a prefeitura realizar o debate, assim como candidatos a vereança. Mas, também, poucos lembraram da já aprovada Política Municipal de Redução de Danos, que ainda não foi implantada e regulamentada, apesar de representar um ponto central para mudança de paradigma.
Com a pandemia, defender o SUS se tornou sinônimo de defender a vida, sobretudo das pessoas mais vulnerabilizadas. Isso significa investir num SUS totalmente público, gratuito e de qualidade com gestão 100% estatal, e que, na saúde mental, álcool e outras drogas implica rever a terceirização dos profissionais e a precarização de suas condições de trabalho.
Se a situação de rua é mesmo identificada como um problema, a prioridade deveria ser o acesso à moradia, saneamento, educação e emprego como fundamentos de promoção da saúde, tal qual fez o programa “De Braços Abertos” em São Paulo. Dessa forma, eventuais problemas decorrentes do uso de drogas poderiam ser prevenidos, como o próprio estado concluiu na CPI do Crack.
Todas essas medidas só ganham sentido quando o gestor está comprometido com todas as fases da formulação de uma política pública, desde seu planejamento até sua fiscalização e monitoramento. Contudo, a sociedade civil pode e deve contribuir neste processo, sobretudo se a ela for dada a oportunidade.
Em um nível mais específico, é possível aprofundar em outras soluções para uma cidade realmente comprometida com a saúde de seus cidadãos, como a implementação de ações de exercício do direito à cidade como parte do tratamento de saúde, facilitando a mobilidade urbana e o acesso aos equipamentos culturais e esportivos; o incentivo à Economia Solidária, possibilitando a autonomia financeira de usuários; de Saúde Mental e seus familiares; a ampliação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS); a operacionalização da desinstitucionalização; a prevenção ao suicídio e a luta pela implementação de cursos para médicos prescritores de cannabis medicinal na atenção primária do SUS, por exemplo.
“Morre mais gente no Brasil na Guerra às Drogas do que, propriamente, das drogas. E é uma guerra que não é dirigida às pessoas de elite, de classe alta, que consomem drogas. Mas a população das periferias. A morte de jovens no Brasil tem um endereçamento postal claro, faixa etária. A gente lida com uma sociedade desigual, violenta, e que efetivamente penaliza aqueles que tem menor condição de sair desse processo de marginalização e de fragilidade”, conclui Fagundes.
As instituições tem lá seus inconvenientes, e estamos atentos para aproveitar as brechas, tensionar os limites institucionais, ter ousadia e radicalizar a burocracia, afinal, as instituições são formadas por pessoas. E sobre o que esperar do próximo período na política de saúde mental, álcool e outras drogas, não esperem. Façamos.
“Marielle perguntou, eu também vou perguntar,
quantos mais tem que morrer para essa guerra acabar?”
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