Enfermeiros e desembargadores são as mais recentes adesões ao negacionismo bolsonarista responsável pela grande maioria das mortes registradas pelo novo coronavírus, cuja soma está pelo menos 20 por cento abaixo da realidade, dizem desde o pessoal da linha de frente nos hospitais até coveiros que, afinal, sabem do que falam. A adesão é o sinal do avanço narrativa do presidente da república em setores sociais e culturais até então impensáveis. Enfermeiros contra o uso de máscaras e desembargadores na defesa da cloroquina parecem distorções iguais a agentes da lei em grupos de extermínio, bombeiros integrando milícias, magistrados vendendo sentenças, policiais extorquindo traficantes. O esgarçamento da sociedade de que tanto se falou nos tempos de Fernando Henrique Cardoso foi substituído nos anos petistas pelas políticas compensatórias e o discurso conciliatório que elas sugeriam; e com o golpe contra Dilma Rousseff esse momento deu vez à política entreguista ainda tímida e inconsistente de Michel Temer. A reforma da Previdência que era seu carro-chefe de governo não se realizou, como tampouco medidas outras ansiadas pelo mercado, e creio mesmo que tudo isso contribuiu para a opção por Jair Bolsonaro, em quem não se tinha confiança mas imaginava-se inteligente e capaz para cumprir o combinado e tocar o novo modelo com firmeza e determinação.
Tenho pra mim que começaram a se dar conta da má escolha do seu candidato antes mesmo da campanha ganhar corpo, ainda na fase de formação da chapa, na escolha do vice, primeiro com o senador capixaba Magno Malta, pastor e cantor gospel de reputação duvidosa, depois com o general Augusto Heleno, ex-comandante da Força de Paz internacional no Haiti acusada de execuções, tortura, estupros e até pilhagem e roubos comuns; e enfim com a advogada e maga paulista Janaína Patalógica Paschoal, colérica, incontrolável, furiosa e assustadora. Nenhum dos três foi aprovado pelo alto comando militar do staff de Jair Bolsonaro, onde pontificava, por serviços prestados como comandante do Exército de Dilma, o general Eduardo Villas-Boas. Como era urgente a definição do vice-presidente, emergiu o nome do general Hamilton Mourão, recém-filiado ao PRTB que já tinha candidato a presidente, Levy Fidélix, sósia do Pinguim do Batman e trânsfuga na política. Teve seis segundos de fama na campanha de 2018 de carona na campanha antigay da direita, ao dizer que homossexuais preferem o aparelho excretor para ter prazer – ou algo deste nível. Mourão emplacou sob a desconfiança do titular, que não confia em ninguém. Ambos compartilham as mesmas ideias, “mutatis mutandi”.
Meses antes dos embates eleitorais e das exacerbações e extrapolações comuns ao período, Mourão mostrava a que vinha, segundo noticiado em InfoMney: “Mourão é conhecido por dar declarações polêmicas. Em dezembro do ano passado, falou sobre a possibilidade de uma intervenção militar no país em eventual situação de “caos” no país. O discurso custou-lhe o cargo de secretário de Economia e Finanças do Exército. Em outra ocasião, chamou o coronel Brilhante Ustra, conhecido torturador da ditadura militar, de “herói”. É também racista, como deixou escapar num desembarque em Brasília ao lado do neto adolescente, e diante da curiosidade dos repórteres que o aguardavam, apresentou-o como exemplo do “embranquecimento da raça” na família. Mais adiante, não considerou racismo o assassinato de João Alberto Silveira Freitas por seguranças do Carrefour de Porto Alegre e alegou que racismo existe é nos Estados Unidos, onde serviu dois anos e é considerado negro por qualquer tabela cromática disponível nos aeroportos locais. Seria de bom alvitre, como se dizia no tempo em que escola ensinava, levar em consideração o passado e as histórias do general Hamilton Mourão antes de gritar nas redes sociais “Impeachment Já!” e “Fora Bolsonaro!”, sendo esta segunda palavra de ordem meio golpista, a meu ver.
Na verdade, tudo escrito acima é história e nada deve acontecer como seria da vontade popular crescente no país. Bolsonaro é uma esfinge fincada em Brasília por uma mistura de má-fé, manipulação, vingança e uma dose de ingenuidade da parcela cansada do petismo e suas seguidas vitórias nas urnas. Todo mundo se lembra que no dia seguinte à reeleição de Dilma o derrotado Aécio Neves fez nos jornais a ameaça que se cumpriu, afinal: “Vamos obstruir todos os trabalhos legislativos até o país ‘quebrar’ e a presidente Dilma ficar incapacitada de governar. Sem o poder legislativo, ela não consegue aprovar nada contra a crise e o desemprego e fica muito mais fácil de derrubá-la.” A eleição de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara dos Deputados, comprada a peso de ouro, voto a voto, levou ao afastamento da presidente reeleita em votação em que ouviram-se votos dedicados “à minha família”; “à minha mulher”, “ao fim da corrupção” e ditos mais escabrosos, como o do Bolsonaro enaltecendo o mesmo coronel torturador.
Agora o país vive situação semelhante, mas com sinais trocados. O presidente toma a dianteira do processo para eleger o presidente da Câmara (o que Dilma não fez) que vai arquivar todos os sessenta e tantos pedidos de impeachment e ser seu aliado nas mudanças já reservadas para a sessão legislativa que começa hoje. São profundas mudanças antidemocráticas permeadas com investidas sobre costumes e moral, restrições ao judiciário, direitos de associação, reunião e manifestação pública e outras providências que terão de ser aprovadas pelo Congresso em ambas as Casas, em dois turnos por dois terços dos 513 deputados e dos 81 senadores. Se tudo correr conforme o planejado, o Brasil será um estado policial com governo totalitário e liberdades cerceadas. Se, no entanto, surgir no caminho algum obstáculo, um jipe com um cabo e um soldado resolverão, já disse Eduardo Bolsonaro.