Sempre acreditei que a miséria, como se costuma associar, vinha da falta do alimento na boca do homem. Surpreendido porém, reconsiderei. Noutro dia, ao acompanhar um célebre amigo numa de suas atividades eloquentes, em ambiente distinto, sobretudo seleto, tive à frente o impasse.
Cabe aqui, especificar um ambiente distinto. Onde por exemplo, um suburbano não pode sobremaneira pensar, sequer armar um churrasco. Não há espaço físico, nem espiritual para tal. Isso é um parâmetro particularmente, seleto. O método que nos distingue dos outros, ditos cariocas, nessa fauna por entre montanhas e vales, certamente é, a capacidade de fazê-lo nos lugares, os mais improváveis.
Nossa régua moral quase tudo permite. Tijolo em brasa da obra inacabada do vizinho, na laje 3 por 3, já vi. Numa banca de jornal, até num andaime de edifício. Nos levantamentos de muro, muito comum de maneira comunitária, sim, com um sem braço, dois pernetas e um cego de um olho, também já vi. Até com carne desviada da cozinha pros fundos da churrascaria, entre entregadores, um clássico. De fato, o local em questão, não permitia nenhum tipo de improviso.
E então alí, de forma a me constranger no fundo da alma, atestei que a miséria pode sim sair da boca do homem, da boca inepta e rude do homem. Talvez, caiba dizer aqui sobre o homem. Entrou pomposo e com ar soberbo de quem é precedido por anúncio, como quando um tapete é desatado em homenagem à figuras nobiliárquicas, ganhando presença antes de quem o pise. Isso é soberbo. Uma taça de vinho na mão, o qual degustava com tamanha apreciação, que o líquido mais parecia fermentar no próprio copo. Camisa branca abotoada até o gargalo, um pastor? Não, um engomado. O Garoto de recados do mercado dizia-nos, envaidecido, veja bem, do valor da burguesia paulistana para o desenvolvimento do país. Como houvesse um “bom burguês”. Criatura, fruto do devaneio, que nunca pisou por estes solos. Senti-me enojado, indignei.
Inteirei-me sem custo imaginando. Ou estava perante, um daqueles produtores de café do século passado, ou um senhorzinho dos engenhos de cana de açúcar, ainda antes. Ou daqueles implacáveis e mal homenageados bandeirantes. Avançados mata à dentro para a drenagem das riquezas minerais, apenas deixavam sangue e terror, irrigando a terra. E, indígenas e quilombolas aniquilados. Se recorrermos a história ou ao drama atual, vê-se que a regra é explorar gente. Ou são substituídas por máquinas, no campo e na cidade, as gentes. Ou as fazem como máquinas, as gentes.Em todo caso, ambos são espoliadores de gente. E, o fazem segundo domínio externo, por onde escoa, tudo que daqui fecunda.
Eis que, meu limite foi, quando ciciava para alguém ao lado, que todo o carioca era insociável, introvertido, desconfiado. Ora! Qual carioca? A maior virtude, que se costuma associar a esse, é a da malandragem. O enigma já não desfruta de mistério. Haja vista, que isso não se cria em condomínio. Resultado da hábil adaptação à realidade vulgar que o desqualifica, o suburbano é aquele que, não sem motivos pra lamentar, sorri e faz pagode. E, se puder pagar as contas, o faz, ou faz gato e não sem dignidade. E, mesmo que honesto, se puder tirar vantagem de um mauricinho engomado, como esse, o fará. Sem remorso, na lábia. Virando canto de heroísmo por esquinas e bares. Tornando-se mito venerado em lugares assim.
Levantei-me da mesa, havia escurecido. E, entre a sala e o banheiro, o qual me direcionei, o concebia nas piores hipóteses. Abriria um bom saco de carvão, suaria bicas. Prepararia a churrasqueira, cortaria carne, poria tempero, poria na grelha. Beberia já sem camisa na laje sem telha, sol à pino, a nossa cerveja mais aguada. E serviria carne, generosamente quando pronta. Gentilmente encheria cada copo disponíveis num raio de cinquenta metros, e sorrindo. Aquelas tias que se pensam gatinhas e o são, a seu modo, em biquínis mínimos, seriam orgulhosamente convocadas. Nosso patrimônio. Para que quando, esfregando-se nele, o ensinasse a ser gente. Depois, assaríamos e o cortaríamos em picadinho, escarnando. E o comeríamos com farofa e macarrão com maionese. E isso, se repetiria, dia após dia. Indiscutivelmente, seu purgatório na terra.
Enfim, caberia aqui dizer também, que o suburbano, o periférico, sabe muito bem que o ouro, digo mais, o ouro e a prata, em questão, na boca desses homens, não só são a sua miséria, sua glória e sua solidão, mas o seu veneno.