Tempos de paz! Será?


A grande mídia vem produzindo muitos materiais sobre periferia. No entanto, esta usurpação do outro que é filmado, fotografado, exposto como mercadoria nos emana uma necessidade de dialogar sobre o cenário das periferias sob a ótica dos periféricos. A periferia é arte, a arte está também na periferia e mesmo assim nos é cuspido à imagem de pessoas miseráveis – se aproveitando do sentido religioso – quando a questão é de políticas públicas.
Este ensaio não pretende desmerecer nenhum dos filmes, livros, seriados e outras produções midiáticas realizados sobre periferia pela indústria da cultura, no entanto, pretende trazer para reflexão as produções realizadas na ilhas de edições situadas dentro das comunidades, nas produções artísticas ensaiadas na quadra da escola de samba, do artista que pinta na sala de sua casa, do Rap que usa os aparelhos da rádio comunitária para fazer música, ou seja, a arte periférica, falada, cantada, escrita por membros da comunidade.
É preciso rever os valores tradicionais impostos pelas estéticas produzidas na cultura midiática; o sujeito produtor não mais precisa estar atrelado a padrões técnicos e acadêmicos para produzir arte.  É necessário ter estudado na Escola de Música Villa-Lobos para ser um exime violinista? É preciso conhecer as obras de Camille Claudel para ser um excelente escultor? Não retiro a importância de cada um destes grandes artistas, mas procuro no pequeno contexto de periferia resgatar a importância dos artistas favelados, excluídos, mas que fazem arte.
Num cenário marginalizado vemos surgir outros modelos para se criar, para resistir. Exemplos disso são os cursos de fotografia, dança e muitos outros que ocorrem no seio das comunidades e que muitas vezes não nascem diretamente das ONGs e sim dos próprios membros da comunidade como as aulas de Capoeira do Mestre André e o Break do Luck na Rocinha ou mesmo num ofício de produzir arte em silk do artista Valentim na ocupação Chiquinha Gonzaga.
A periferia arruma seus modelos de sustentação e os propaga dentro de um espaço territorial limitado, deflagrado pela falta de estruturas e vigiado pelos cães do poder.
O fato é que – no mercado – os direitos humanos coexistem, por exemplo, com a segurança da propriedade que, ao contrário, ignora-os ou até os nega:

Quem pode assegurar e gerir a miséria das favelas senão policiais e exércitos potentes que coexistem com a democracia?
(Cocco, 2003, p. 12)
Vivemos num Estado onde a democracia universal não existe isso acontece porque estamos inseridos num sistema capitalista onde o universal é o mercado, assim se a arte produzida dentro das comunidades carentes pode virar produto no mercado logo é captada pela cultura midiática. A moda do momento é vender cultura de gueto, dentre tantas questões lamentáveis nesta parte da história está à criação de estereótipos daqueles que são chamados favelados.

A cultura de periferia pede passagem

“ô abre alas que eu quero passar”

Grandes inovações no contexto cultural brasileiro são oriundas das favelas. Manifestações culturais como o Funk, Hip Hop e outros rompem os muros das favelas e ganham brilho em outros espaços.
O leito deve estar se perguntando “mais tais manifestações já não foram compelidos pelo mercado cultural?” Meus caros, assim como o Funk virou mercadoria e perderam algumas das características que o faziam singular no contexto brasileiro, o fazem agora com o Hip Hop.
As letras malcriadas, logo de resistência, faziam do Funk[1] um estilo musical odiado pela classe dominante (“elite”), no entanto, a batida energizante, a sonoridade que estimula os músculos unida a uma moda no vestuário fizeram a cabeça até dos críticos mais ferrenhos. Isso não ocorreu do nada, o mercado sempre está de “olho” naquilo que pode vir a gerar lucro.
O Funk cruzou pelo Brasil e foi parar até na gringolândia[2], mas foi aqui que gerou tanta polêmica.
O que começou enquanto um ecoar de vozes em tom de denuncia (“minha cara autoridade eu já não sei o que fazer…”) virou um pop em moldes “globais” (“menina musa do verão você conquistou o meu coração, tou vidrado…”), porém, por mais que a mídia tenha mexido nas “cores” deste quadro chamado Funk, ele ainda existe como expressão de resistência e tom de denúncia.

Vimos surgir “As Amantes”, “As Fiéis” e vir à tona o Funk Proíbidão – não o Proibidão do Catra que só queria a putaria – mas o Funk que fazia uma narrativa do dia-a-dia do tráfico (“fogo no X9 da cabeça aos pés…”), impondo seu poder de fogo como bravos guerreiros cantando hinos para a batalha (“Bota a cara, a bala vai comer” e “liga, se liga, se tu fica de mancada você vai virar raiz, peixe morre pela boca vacilão pelo nariz”). Contudo do outro lado também tinham guerreiros que começaram a replicar também com hinos para batalha (“Homens de preto, o que é que você faz? Eu faço coisas que assustam o satanás. Homens de preto, qual é sua missão? Entrar na favela e deixar corpo no chão”), só que estes dispunham de veículos com som e blindagem.

Eita mundão! Quem tem mais aproveita mais dos avanços tecnológicos.
Com todas estas mudanças no quadro funkeiros vemos hoje um Funk esperando uma sentença de morte? Bem, para aqueles que se agarram ao mundo material restou pegar uma carona na van do Hip Hop e seguir caminho; com cautela é claro, porque estes se não estiverem legalizados podem sofrer com a repressão.
O movimento, digo o momento Hip Hop também parece está fadado a ser tomado – em forma de assalto – pela indústria da cultura. Os Racionais Mc’s na letra da música Negro Drama nos prevêe isso quando Mano Brow compara a vida de quem viveu na favela e hoje vive no asfalto, vai mais além dizendo da influência de sua música para a nova geração:

 Inacreditável, mas seu filho me imita. No meio de vocês, ele é o mais esperto. Ginga e fala gíria. Giria não, dialeto. Esse não é mais seu. Hó, subiu, entrei pelo seu rádio, tomei, cê nem viu. Mais é isso ou aquilo. O que, senão dizia, seu filho quer ser preto. Rhá. Que ironia.(Racionais Mc´s).

O Hip Hop é uma manifestação de resistência, mas como qualquer outra manifestação cultural tende a ser mercadoria nas mãos da indústria da cultura.
Seremos contra faturar uns trocadados? Ter dinheiro para comprar uma casa e sair da favela, das periferias? O que está em jogo, não é a venda de um produto, mas a perda da singularidade.
Como Giuseppe Cocco (2003)[3] – , atesta em seu artigo para a Revista Global Brasil, a organização do movimento e a organização da produção é a mesma coisa. Entretanto, como estas produções são criadas e distribuídas que fará o diferencial entre um movimento e um momento onde se especula em demasia, apropria-se superficialmente de uma obra e depois joga num canto da parede, da estante ou qualquer outro espaço que não seja o comum, é uma questão de mercado e não há consideração ao artista, somente o preço da sua obra. Tudo é volúvel em demasia neste sistema.

É hora não só de produzir, mas entrar na luta pela distribuição. No nordeste o tecnobrega tem demonstrado que os artistas não precisam de grandes gravadoras para conseguir trabalho e reconhecimento.

[1] Segundo o Dicionário Novo Michaelis: 1. medo, susto, pânico, pavor; 2. medroso, medo de, covarde; 3. aterrorizar, assustar, intimidar.
[2] Gringolândia é como Frida Kahlo chama os Estado Unidos da América.
[3] COCCO, G., “Os direitos humanos não nos farão abençoar o capitalismo!” – Uma entrevista imaginária com os filósofos Félix Guattari e Gilles Deleuze. In: Global Brasil, 2004, Rio de Janeiro, nº 3, p. 10-13.