Não precisei olhar o berço pra saber do meu filho morto. Aquilo só me lembrava que eu não precisava sair pra comprar flores. Muito menos pra medir ausências ou apontar culpabilidades. E portanto, e por tanto tempo, amanheci sem vontade de falar das borboletas. Muito menos das que moraram um dia no meu estômago. Minha nova fobia vinha em montes: era imensurável. Povoada de lagartas, de ninfas, asas estraçalhadas e voos proibidos, meu ventre tinha virado um túmulo. Uma janela aberta para imensidão do mar. Minha impressão era que, se eu colocasse a mão sobre a minha barriga, ela aparecia nas minhas costas. Vazia. Desolada. Transparente.
E, por muito tempo, sequer ouvi as formigas do Miguel levando a nossa casa nas costas: o balé dos cristais de açúcar nas pequenas patas, sem grandes rodopios e malabares, na branquidão da porcelana de desenhos de rinocerontes do Duhrer. Minhas formigas carregavam exoesqueletos natimortos, dentro de gotículas d’água. E saíam do meu umbigo celebrando um funeral que sempre refutei pro João. É que eu não iria sentir nunca o cheiro quisto da sua nuca. Não iria nunca beijar seus pés pequeninos. Não iria nunca batucar nos seus ouvidos os sons do meu coração… Nem ouviria ele me chamando de “mãe”.
Também nem precisava…
pensar no que fazer com os presentes ganhos, agora que tinham deixado de ser doce natureza de promessas para se tornarem souvenires de dores. Nem precisava olhar para outros de sua idade. Bastava meu respiro, simbiose invertida, para não sentir o corpo-menino encostado ao meu, por dentro. Ele que já não podia me consertar, nem me ajustar. Ele que passou a fazer parte do mistério das borboletas-suicidas, que eu vi voarem em direção ao mar, quando criança. Encabeçaria as coisas que nunca entendi o porquê.
Intocáveis sob o mar, as borboletas…
enquanto revérbero. Morando por aí em pedaços naufragados pelas praias, eu que achava que o tempo passava, no chocalho, na trota… Que a luta valia por todos os sonhos. Mas, na verdade, dizem que o tempo sequer cabe na medida dele mesmo. Que mora naquele mesmo mar, fecundado por luas. Ele. E, nesta imensa água, é que se multiplica – todo dia – em “vocês” e nos outros.
Daí voltar pra ver pescadores no outro dia. Eu queria só seguir sentimentos como itinerários, ensinados pelos homens do mar. Aprender sobre o mergulho das tartarugas ao irem embora sem olhar para trás, confrontar-me com os besouros marinhos, que carregam consigo os filhos, até que construam seus próprios buracos. É que tartarugas sentenciam histórias dos outros, entre cascas pisadas de abandonos e crenças estapafúrdias de autossuficiência. Os insetos marinhos, por sua vez, são tão pequenos que cuidam de completarem-se com outros. Raros. A maternidade é isso: este escavar de abismos e milhões de tentativas de encher vazios. No que perdemos, no que ganhamos.
Pois, a maternidade diz sempre mais dos pais, do que dos filhos, do preencher das nossas costelas e dos medos. Do seu pezinho, filho. Do seu cotovelo e de choros e risos nunca sentidos. É que maternidade é, sobretudo, de uma mãe que é feita de um filho que a constrói internamente. Que te toca, pra ajustar imperfeições, minúscula mão artesã que te reboca por dentro, onde mais ninguém consegue tocar. É que, sem você, falta um pedaço. Mas é ainda, com e por você, que as borboletas insistem ainda em pousar na minha mão. Todos os dias.
Leia também a matéria em que falo sobre o aumento da violência contra ativistas dos direitos LGBTQIA+.
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