Os perigos do empreendedorismo por necessidade que cresce a cada dia e não dá direito algum aos trabalhadores
Sentada no banco da cozinha, olhando as latas de leite condensado, ovos e outros ingredientes para seus bolos e doces, Maria das Graças, 59 anos, faz as contas de quanto precisará vender nessa semana. Com um suspiro cansado e preocupação no olhar, ela solta uma gargalhada e afirma: “Esse negócio de ser patrão de si mesmo só dá certo pra gente rica que já começa com muito dinheiro; pra gente que é pobre é só trabalho para não ter nada garantido. ”
Desempregada desde 2019, dona Maria vende doces na Vila Xapinhal e nos terminais de ônibus de Curitiba. Após nove meses rodando a cidade inteira em mutirões de emprego e distribuindo currículos para diferentes vagas, Maria das Graças se tornou trabalhadora informal e vive da venda de doces e trabalhos como diarista. Mesmo trabalhando 18 horas por dia, sua renda só chega até mil reais mensais. Mas, como sair dela, se ela é o único sustento da família, que inclui uma filha e dois netos?
A realidade de Maria das Graças é comum em todas as regiões do Brasil. Segundo o Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo, atualmente são 9,1 milhões de pobres vivendo em nosso país. São consideradas pessoas pobres, segundo o critério do Banco Mundial, as pessoas que vivem com uma renda mensal per capita (por pessoa), inferior a R$ 469,00 por mês. E em extrema pobreza considera-se aqueles que vivem com 162 reais mensais.
A pesquisa “Nas dobras da precariedade: desigualdades regionais, de gênero, raça e classe no trabalho “por conta própria” no Brasil – um olhar para a PNAD Contínua”, realizada pela Universidade Federal de Santa Catarina e divulgada em julho deste ano, destaca que 2,4 milhões de pessoas trabalham por conta própria no Brasil, sendo que quase metade (48%) tem renda inferior a mil reais por mês e apenas 7% têm renda superior a 4 mil reais. Ainda segunda o estudo, a discriminação de raça e gênero também age sobre a categoria. Enquanto as mulheres negras são maioria na primeira faixa (até mil reais) representando 63% desta faixa, os homens brancos estão concentrados (48%) no segmento de renda igual ou superior a 4 mil reais.
O trabalho informal quase sempre traz uma falsa sensação de independência, assim como a do Brasil, tão festejada e comemorada em todo 7 de setembro, mas que na verdade não teve nenhum significado social. As duas situações não modificaram em nada o momento socioeconômico, nem da época, nem atual, permanecendo até hoje com as mesmas características do período colonial, entre elas o trabalho sem direitos e a preservação dos privilégios aristocráticos.
Deboráh Aparecida Souza de Oliveira, 32 anos, é vendedora de bijuterias e acessórios artesanais, estudante de jornalismo e sabe que não é empreendedora. “Eu sou uma mulher negra na informalidade, tentando sobreviver. Não tem glamour de empreendedorismo não, é só perrengue mesmo”, fala Deboráh.
A estudante afirma que recorreu ao trabalho autônomo quando percebeu que o mercado formal não a inclui. “Mulher negra, gorda e mãe tem uma batalha muito maior para ser aceita pela sociedade, principalmente no mercado de trabalho”, desabafa Deboráh.
O diretor do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese-PR) Sandro Silva explica que o trabalho autônomo é diferente do empreendedorismo. “O empreendedor é aquele que tem convicções financeiras e entra no mercado de trabalho para multiplicar o capital, ampliar sua acumulação. Já os trabalhadores autônomos são aqueles que não foram absorvidos pelo mercado de trabalho, seja por falta de capacitação, seja pela crise que estamos vivendo,” explica o diretor.
Ainda segundo Sandro, existe um trabalho da comunicação do atual governo federal para valorizar o microempreendedor individual e disfarçar a falta de emprego e de condições de vida que o Brasil enfrenta. “Não tem registro em carteira, não tem garantias e direitos, reforça o diretor do Dieese-PR.
De acordo com o IBGE os trabalhadores por conta própria foram os mais impactados pela pandemia. No primeiro trimestre de 2020, eles receberam 76% dos rendimentos habituais. E em 2021 ainda houve um aumento de 1,4% nesse modo de trabalho.
Tanto Maria quanto Deboráh trocariam a situação de “empreendedoras por necessidade” por uma vaga com carteira assinada e seus direitos trabalhistas, mas as duas sabem que essa realidade está cada vez mais longe com a crise que se acentua no Brasil.
“Esse discurso de que somos donas das nossas vidas e livres é o mesmo discurso quando os escravizados foram libertados. Diziam que a população era livre e igual, mas essa condição nunca foi real, muito pelo contrário, o que houve e existe até hoje é um reforço das desigualdades”, conclui Deboráh.
“Eu sonho que minha filha consiga um trabalho de verdade, que ela não tenha que ficar a semana toda inventando coisas novas e contando com a sorte para não morrer de fome”, finaliza Maria.
Matéria publicada originalmente no jornal A Voz da Favela edição (setembro/2021)
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