Crônica: O fantasma da obra

Crédito: James Graham

Há mesmo um fantasma em cada obra, que todo artista carrega consigo. Tem vida própria. Quando em vez, pessoas passam, as reconhecem, nada dizem. Bebem, conversam se enamoram e são esquecidas a um canto escuro, raramente bem tratado.

Em geral, tem a vida isolada, deprimida. Meditam aos fungos, tem dúvidas, muitas vezes, se desesperam. Há obras que perambulam entre nós, nos desorientam. Forçam a levá-las conosco. Tornam-se fantasmas dentro de nós. Juntam-se a outros que carregamos. Para sempre, nunca mais esquecê-las.

Tem desejos. Umas, dizem, desejam os coktails, os flahs, as festas e os festins, nas cerimônias, o centro das atenções e na aglomeração vazia, a integral falta da reflexão. Há também as que desejam um confortável exílio de museus. Há outras, um suicídio artístico simplesmente lhes bastaria, quando negam a si próprias, a serem vistas. E, há as que desejam ser pensadas.

As que exigem movimentos. Como àquelas das periferias, creio eu. Sei bem o que elas desejam. Pois somos irmãos. Seus espectros nos cercam como um pesadelo. Dia após dia. À noite falam. Sussurram. Gritam. Essas têm compromisso, em conseqüência disso, nos comprometem. Tem propósitos. Porque carecem de meus desejos, de meus propósitos. Das profundezas das margens dos indivíduos levantam barricadas. Com uma intensidade oculta que governa a todos, como um só.

“Ora, a periferia de que falo não é apenas um local que se possa apontar no mapa. São tantas. Tão obscurecidas pelos grandes centros. Na cadeia universal dos elos que compõem as fronteiras econômicas e culturais que, se destacam no globo, para cada qual, existem suas margens, essas, que sustentam com suor e sangue, as riquezas que se ampliam à concentração e à opulência dos que desfrutam no centro.”(*)

Por isso, é certo que, o desejo da obra de arte não é senão, a incorporação imediata, consciente ou não, da visão de mundo de seu autor. Ela deve idealizar e redefinir seu projeto, na construção e após a conclusão. Mas, nunca deixará, a filha, ser o fruto de seu pai. Como ao pai, suas origens.

Crescerá, amadurecerá com a voz do pai nela, como ao pai, sua margem e tentará deixar de ouvi-lo, convergindo perspectivas novas, ao longo da vida. Alguns apaixonados dirão até que se viram nela e que os revelou o grande enigma. Contudo, sua função coletiva de se posicionar antes a tradição, perante o futuro inevitável, em um presente histórico, como um “sujeito histórico”, sem dúvidas, é seu gesto no mundo.

E tanto, o desejo da obra de arte é sua sobrevivência, salvando a alma do criador da correnteza do tempo. Como, o desejo do criador é crer que a causa, que se dedicou à existência, deve se perpetuar na transformação da sociedade, da qual faz parte. O samba, o eterno ritual, como linguagem artística oriunda da periferia, seus primeiros autores, não viram sua arte se tornar a expressão da identidade de um povo.

Já as obras que, almejam a ilusão das “festas” são àquelas, em decorrência da solidão abastarda, frequentemente, perdem o brilho. Porque, para sentirem-se menos sóis, mas recortadas da populaça, selecionam suas adeptas. Para cada circo de privilégio, há sempre uma ansiedade de afirmação. Expostas. Aclamadas e diminuídas. Tornam-se um lustre a mais. Tuas palavras são ruas vazias.

Mas, as obras de arte que, legitimamente, levam a periferia, trazem em si as chamas do asfalto, dos fuzis, as chuvas de lágrimas em céus desertos. São espíritos que protestam às guilhotinas. E deslocam os eixos bradando a carne viva. São obras de fibra coletiva cravando a pleno serão à greve, num reboliço das estruturas.

Antes de tudo, são um tributo a inquietação, ao debate à obra, à arte, ao artista e ao fantasma que o acompanha, cara a cara com o subemprego, do subumano, subnutrido. Do cativeiro controlado pela ordem, que não deixa obscuro espectador. E, que a periferia é capaz de transformar, na tomada da chibata do domador, os versos mais intensos. Mesmo, reveladores da felicidade, que vem do povo.

Por isso, creio que essa “festa” seja a destruição da obra. Uma esteticista da desgraça. Até porque, quem deve se preocupar em servir a ordem é a polícia, não à arte.

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