Crônica: Infiltrado nos trutas

Crédito: Agência Pública

Por que chegava alerta e sem compreender o que todos pareciam querer explicar tanto, quando estacionou a moto na calçada?

Havia no máximo 15 motofretistas espalhados em meio ao largo. Antecipado em uma hora. Viu os companheiros mais chegados. Reconhecido, apertou mãos no caminho. Ao passo que retirava o capacete, carregava a expressão forçada nos cumprimentos, refletia o esgotamento de todos ao redor.

Uivara a lua à noite passada. O som bruto do motor roncara na cidade escura. Não havia semáforo nem giroscópio certos, também, tirando um real e meio por quilômetro rodado, com um mínimo de apenas cinco garantidos, haveria de os ignorar. Deixava pra trás a própria sombra.

Em torno de três horas ficou em casa. Viu a esposa, as filhas, comeu. Acordou no sofá, pegou a chave da moto, buzinou na frente já partindo.

Na sua turma dos uniformes de couro e das bags vermelhas nas costas, criava-se um impasse. Mostravam-se tristes. Havia intriga entre eles. Agitado, a garganta travada, demorou a perguntar, quando o fez…

− Que barulho aconteceu que todo mundo se dividiu, mano? O breque não ia resolver as coisas? O trampo nosso não ia melhorar? Tu não disse, que os home eram patrão, tinham que pagar os benefícios? Cadê?

Um dos companheiros o interrompeu:

− Calma meu! Descobrimos. Calma!  Tinha filtrado no meio dos trutas! – Com as veias da cabeça saltando, como se estivesse com uma barrada de ferro nas mãos.

− Cadê ele? – Olhando e buscando nos rostos próximos.

Todos disseram “não”. Com mais poder de persuasão e tempo de corre na rua, um outro se pôs a explicar.

− A empresa colocou gente deles entre nós. Planejaram desde início. São eles que estão fabricando toda a treta entre nós.

Os entregadores de aplicativos vivenciavam um dilema fundamental. Eram os primeiros sintomas da antiga questão, trabalho versos capital, agora, na era digital. Todos os direitos adquiridos e conquistados, na história moderna dos trabalhadores, eram devastados. Ninguém a quem eles pudessem reclamar e negociar numa mesa.

Havia apenas uma marca que o entregador poderia se opor. O serviço que prestavam era bem visível, o patrão e seus intermediários estavam protegidos por trás de um algoritmo, à sombra da fumaça dos motores. Depois da indústria 4.0, veio o marketing 4.0, surge então à espionagem 4.0. O que restava a eles senão, as tradicionais formas de combate? A paralisação imediata.

Contudo, se parassem não seriam demitidos, apenas punidos. Em outros tempos, se negasse o trabalho o cativo era castigado, não libertado. A complexidade da vida estava nas ferramentas que os prendiam, no aplicativo que, diuturnamente, prometia oportunidade, seu grilhão mais pesado.

− Agora você entendeu?

Estendeu o capacete no chão, tirou as luvas suadas, fediam, puxou um maço de cigarros. Na dúvida fez que sim, mas que não. Não completamente. Não era possível terminar uma idéia sequer, exaltados, intercalavam na tentativa de fazer-se mais claro ao irmão.

Foi quando, entre eles, saiu um com uma pérola.

− Sabe teu cigarro. Ele faz mal pra saúde. Mas, você usa ele e sente bem. Esse bem passa rápido. E tu sabe que talvez isso te dê câncer.

Não viu saída, a não ser concorda com a cabeça, calado.

− Então. Você compra porque tem gente que trabalha para a empresa de cigarros que te estimula, fora o próprio vício. Antigamente, vídeos lindos te chamavam a usar isso que te faz mal. Então, o aplicativo contratou uma empresa de publicidade para fazer a gente acreditar que nossa mobilização não daria certo. Jogou gente deles entre a gente. Pra gente brigar. São muitos milhões nisso. E que era melhor a gente aceitar o que nos faz mal. Hoje, tu vai levar comida pra casa. Certo? Isso te faz bem, mas passa rápido. Depois tu vai rodar como um viciado. É o aplicativo que manda na sua vida, do jeito que manda, vai te causar um câncer amanhã.

Todos se calaram. O que acabou de expor, estendeu a mão, deu um trago no cigarro do outro. Puxou firme. Soltou lento. Olhando fixamente.

− Se fazem isso com a gente, investigam, infiltram… fazem a gente acreditar que o ruim é bom, imagina, vai saber o que eles não fazem, por exemplo, numa eleição?

Já havia multiplicado em muitas vezes o número de motofretistas que se mobilizavam naquele largo. Entre os trutas o silêncio permanecia.

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