Resenha- Literatura de Peri: Periferia-Coletânea Cooperifa

Em primeiro plano, o poeta Sérgio Vaz, um dos protagonistas do Sarau da Cooperifa- Crédito: Cooperifa

Antologia poética é o primeiro registro em livro do sarau que inspirou muitos outros na capital paulista

Em 2004, o planeta era bem outro. Vivíamos o segundo ano do primeiro governo Lula, Paulo Maluf amargava sua pior votação para prefeitura de São Paulo, Google anunciava a criação do Gmail, enquanto, em Marte, era detectada a presença de água congelada.

Na periferia de São Paulo, rolavam lances decisivos para construção do cenário literário que, hoje em dia, está estabelecido, reconhecido, e vai muito bem, obrigado. Um desses eventos pioneiros foi o Sarau da Cooperifa, cujo primeiro registro em livro é de 2004.

Três anos antes, os encontros para declamar e ouvir poesia tinham começado no Bar do Garajão, depois transferidos para o bar do Zé Batidão, ambos nas margens ao sul da capital paulista. Vários dos poemas destilados nesses bares foram reunidos na antologia O Rastilho de Pólvora, livro dificílimo, senão impossível de encontrar para comprar atualmente.

Trata-se de um registro raro, daqueles que deram origem à série, cujos episódios são incontáveis. As marcas do período, positivas e negativas, são, por exemplo, a possibilidade de expressão da periferia em livro, ainda um artefato de elevado status cultural; a prevalência de produções masculinas, com 53 poemas contra nove de mulheres; e a reverberação ainda forte do rap nos textos de poesia e prosa.

A leitura da coletânea nos faz lembrar daquele que provavelmente é o mais importante disco de rap lançado no Brasil, Sobrevivendo no inferno, do Racionais MCs. Ele reverbera desde o título de textos, passando pela estilística literária, palavras e abordagens da temática periférica.

Livro é o primeiro a registrar os poemas declamados nos bares

Entre os autores, encontramos nomes que continuaram no cenário, outros deixaram seu único registro no livro, todas e todos construtores de uma caminhada que rendeu outros saraus, livros, teses, artigos científicos, reportagens jornalísticas e, sobretudo, o orgulho periférico, inédito nas proporções tomadas neste terceiro milênio em São Paulo e no Brasil.

“Muita gente começou a escrever poemas por causa do sarau. Muita gente começou a ler por causa do sarau. Muita gente voltou a estudar por causa do sarau, e essa antologia é o resultado dessa luta incansável do ser humano simples contra as complexidades do dia-a-dia”, escreve o poeta Sérgio Vaz na apresentação da antologia.

Dezoito anos depois do lançamento, estando quase vencida a pandemia, vivendo sob um governo autoritário e retrógrado, a importância da obra e do movimento do qual ela faz parte é muito maior. E atingiu a maioridade.

Olhando para trás, é nítido que neste século a periferia construiu autoestima, passou a perceber sua potência transformadora, tomou consciência de seus direitos, da beleza de sua cor. O caminho para a conquista do mínimo de dignidade para a maioria é longo, certamente maior do que foi percorrido.

Mas não há dúvida de que, sem a produção cultural periférica, crescente e espraiada por diversas manifestações, especialmente de música e literatura, estaríamos bem piores, e o cenário de 2022 seria bem outro…

Ouça no Spotify o 12º episódio do podcast Literatura de Peri, Periferia, com poemas da coletânea tratada nesta resenha, O Rastilho de Pólvora.

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