A alma encantadora dos bares: crime e castigo

Bar do Gomes é um dos mais antigos de Santa Tereza - Foto: Wallace Pato

Decididamente, se houvesse uma tarde mais incomum e chuvosa que pudesse se aproximar daquelas reuniões de grandes idealistas afetivamente congeladas na memória e tiradas dos registros de outro século, teríamos retornado então com fé através do tempo.

Não estávamos num dos cafés de Paris, que, em dado momento, concentraram as mentes mais brilhantes. Muito menos no cabaret Voltaire, na Suíça, quando, durante a Primeira Guerra, refugiaram muitos artistas. De fato, não dividíamos espaço com os principais poetas, cronistas e músicos da Ouvidor, na época das confeitarias da rua do Ouvidor, cidade de São Sebastião. Nem nos botequins entre becos da Lapa e Glória, onde a malandragem honrava-se ou no jogo, ou no punhal.

Uns de nós até poderia se achar numa conversa de cineastas pela libertação da América-Latina, como outrora. Outros de estarem mesmo presentes entre aqueles bambas antigos rindo das composições de amor e dor. Não! Éramos em sete apenas, numa esquina de Santa Teresa, rua Áurea, bar do Gomes. E, a medida que descia sem cessar a água lá fora, nos víamos confinados.

Essa proximidade talvez tenha se revelado para mim na estrutura centenária, na arquitetura original e bucólica do bar. No entanto, cada um desses espíritos indomáveis do passado estava ali. Havia em cada um de nós um Picasso, um João do Rio. Havia em cada debate os desvarios de um Salvador Dali, um Buñuel, a garra de um Candeia, um riso de uma Madame Satã. Até mesmo um Heitor dos Prazeres como um Marighella ou um Dostoiévski, tramavam entre nós. Lá percebíamos a presença apaixonada da rebeldia e do inconformismo, que essas entidades podem emanar.

Apesar de tanto, quando um companheiro de rodada, às 5h, pediu ao garçom que lhe adiantasse a conta, a todos indignou. A esquina inteira se indignou. Insistimos numa saideira, de forma que a sua ausência não caísse no vazio. Ele havia sido o mais fervoroso, bravo e indócil de todos nós. Uma simples frase dita, combinava o eco da voz de um oráculo, asseverando os quatro cantos ao punho fechado batendo no peito como um Exu. Um titã, que transportava todos a um terreiro.

– Meu objetivo no mundo é amar. Amar a arte e ao próprio amor! – dizia, repetidas
vezes.

A saideira viera como uma homenagem. E foi uma homenagem após a outra. Como a homenagem era de tamanho quilate, qual o tamanho do amigo, ele não se ia nunca. Às 6h já estava parado na porta, perguntando e gritando quanto havia ficado o valor. Contudo, não havíamos terminado a terceira saideira e como o que dizia disputava com a tempestade, ignorávamos. Às 7h, por volta da quinta, inquieto, já desatinava a beira da esquina. Olhava pra dentro do bar, por vezes nem isso, parado ali como uma sentinela.

Bateu oito e meia, no que antes era a mesa conspiratória de tomada da Bastilha. Serenamente, reivindicamos ao dono do bar uma última rodada, depois de paga a conta, como “choro”. Nosso amigo não se aguentando, confessou:

– Tenho horas pra chegar em casa! – abrindo os braços, como se estivesse clamando compreensão.

Sem que a esposa tenha sequer ligado uma única vez a ele. Então soltaram:

– Já não se fazem mais revolucionários como antigamente.

Quando a pós saideira chegou, ele então bebeu como fosse uma taça de veneno, engolindo a seco, diante da imagem indiferente e cruel de um carcereiro. Nos olhou rígido, esvaziou num só golpe fatal. Até aquele instante, não havíamos compreendido a verdadeira calamidade de perder tal companheiro. Agora, todos indagavam. O crime do abandono e o castigo de seguir sem sua luz entre nós.

O Miguel, o nosso “lulinha” desabou, cobrindo o rosto com a mão:

– Deus me livre dessa vergonha.

Víamos perante a agonia do herói, uma agonia pela noite adentro. Que em segundos já havia vivido o fenômeno da queda mitológica. E, perdendo as cerimônias, deu-nos as costas e foi. Eu que estava indignado com a atitude do amigo, que acreditava como os antigos boêmios e artistas, na ordem suprema da vadiagem, ainda assim, sobre dúvidas, mantive calmo e fui em sua defesa:

– Esse cara aqui é um mártir! Ele ama com a violência e a disciplina que moveram todas as transformações.

E, debaixo de vaias, atravessei a rua alagada correndo, para não perder o carona do amigo que partia, já que eu havia bebido tudo que tinha.

Concluída a fuga estratégica, no carro, depois de tantas, desabafei num pensamento alto a caminho da solidão do meu bangalô:

– Quem me dera amar assim!

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